Maria Inês Gomes Rodrigues Fontinha nasceu na Madeira no ano de 1943.
Socióloga

Acompanhei durante estes longos anos cerca de 8000 mulheres e afirmo com segurança que a prostituição viola severamente a dignidade humana e os Direitos Humanos.

Maria Inês Gomes Rodrigues Fontinha nasceu na Madeira no ano de 1943. Filha de Georgina de Jesus Gomes e de Júlio Roque Gomes, cresceu numa família numerosa de sete filhos. Segue os seus estudos na Ilha da Madeira e, em 1964, vem para Lisboa onde ingressa no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, licenciando-se em Ciências Sociais e Políticas no ano de 1969. Foi pela mão de um seu amigo jurista que, em 1975, conhece a Associação O Ninho, instituição particular de solidariedade social fundada em 1967 por  impulso de Ana Maria Braga da Cruz, com o objectivo da promoção humana e social das mulheres vítimas de prostituição. Em 1976, torna-se monitora do lar de acolhimento das raparigas. Anos mais tarde será a coordenadora de lar e posteriormente directora de serviços. Trabalhou quase 40 anos na reinserção social das mulheres que se prostituem no sentido do desaparecimento da prostituição o que lhe dá uma indiscutível autoridade na matéria.

Inicia a sua actividade em O Ninho, em 1975, vivendo um período de mudanças profundas advindas da Revolução de Abril de 1974. Em plena euforia da liberdade conquistada, viu-se confrontada com uma realidade que desconhecia, a realidade das raparigas que residiam no Lar de Acolhimento, buscando caminhos de mudança, encontrando nele uma alternativa para a saída do sistema prostitucional que as acorrentava. Assinale-se que O Ninho, criado em Portugal à semelhança da instituição francesa Le Nid, com ela partilha objectivos e métodos, mas a sua singularidade apresenta um traço notável de persistência reconhecida quer dentro do País quer no estrangeiro. Em Portugal, O Ninho teve um papel fundamental na alteração da lei existente ao tempo do fascismo, quando a prostituição era proibida e as mulheres eram presas por se prostituírem (lei nº44 579 de 19 de Setembro de 1962) deixando a prostituição de ser crime a partir dos anos 80. Sempre atenta às mudanças operadas na sociedade – e no mundo – a instituição portuguesa foi membro fundador da Federação Europeia para o Desaparecimento da Prostituição, criada porque “a comunidade europeia está a ser pressionada pelo proxenetismo organizado no sentido da legalização”[1]. Em 1992, Inês Fontinha é eleita Presidente dessa instituição europeia.

Em 1982, é convidada a integrar o corpo docente do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, tendo sido foi membro do Senado da Universidade Técnica de Lisboa, entre 1991 e 1992. Em 1985, representa Portugal na Assembleia-geral da Federação Abolicionista Internacional, realizada em Viena de Áustria e em 1989, é convidada pela Câmara Municipal de Madrid a representar Portugal no Seminário Prostituição e Sida.

É membro do Conselho Nacional do MDM, tendo recebido a Distinção de Honra do MDM em 1992. Recebeu o Prémio da Revista Mulheres e muitas outras Revistas a consagraram nas suas páginas. Condecorada por Jorge Sampaio, recebe a Medalha de Mérito em 6 de Março de 1998. O Ninho, de que é Directora, é homenageado pela Assembleia da República com o Prémio de Direitos Humanos em 2003, sendo galardoado por várias organizações, entre as quais a Ordem dos Advogados.

Em 2005, em reconhecimento do seu mérito e prestígio pessoal, Inês Fontinha integra uma lista de mil mulheres proposta ao Prémio Nobel da Paz, lista apoiada pela organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), para se contrapor ao facto de que desde 1901 apenas 12 mulheres terem sido galardoadas com o Prémio Nobel. Ainda que tal não tenha sido aprovado, Inês Fontinha sentiu-se muito honrada com essa proposta, tendo considerado na altura que, em geral, “Só as mulheres que têm sucesso na política ou a nível empresarial são reconhecidas, e que as que desenvolvem um trabalho social têm pouca visibilidade”, e nessa medida, considerou essa distinção muito importante para “dar visibilidade às mulheres” que desenvolvem “trabalhos ocultos” e apoiam pessoas marginalizadas.

Tem vários artigos sobre a problemática da prostituição publicados em colectâneas e inúmeras intervenções em encontros e congressos nacionais e no estrangeiro.

Inês Fontinha é uma figura surpreendente e muitas vezes polémica que se entregou de corpo e alma a uma causa sem nunca perder a verticalidade para poder denunciar quem produz o mal que, entretanto, diz querer erradicar. Sem nunca deixar de reivindicar e propor, mesmo nos tempos do fascismo, uma solução mais digna para as mulheres caídas na prostituição por razões económicas e vítimas de uma sociedade em que os homens pretendem ser donos e dominadores das mulheres e dos seus corpos. Nesse sentido, pronunciou-se ativamente contra a criação na Mouraria, em Lisboa, de uma casa-refúgio, um anunciado prostíbulo camarário para prostitutas, onde estas também poderiam praticar sexo pago. Admitindo que esta proposta possa representar uma “forma camuflada de tentar legalizar a prostituição”, considera que é um projeto perigoso e aberto a novas formas de exploração. A pretexto de proteger as mulheres contra a Sida (quem sobretudo protege são os clientes!), pode ao contrário estimular o proxenetismo e o negócio. Os direitos das mulheres à igualdade e os direitos humanos estão sempre no seu horizonte quando equaciona a problemática da prostituição. “A legalização é um atentado aos direitos das mulheres, aos direitos humanos, é completamente perverso legalizar a prostituição”[2] . Conhece todo o argumentário a favor da legalização da prostituição e facilmente o desmonta, baseada na sua experiência acumulada junto das cerca de 8 000 mulheres que acompanhou na Instituição ao longo dos 40 anos em que nela trabalhou e das histórias de vida contadas num ambiente de psicoterapia institucional. Inconformada com a peregrina ideia de que a mulher é livre e tem legitimidade para “vender” o seu corpo, responde “Defendemos uma sociedade onde as mulheres tenham igualdade e agora vamos criar uma situação de subalternização ao homem, conceder ao homem o poder legítimo de comprar uma mulher?” O que existe, nesta situação, isso sim, “É o poder legítimo de o homem querer e poder comprar”. E adianta, “Não conheço nenhuma mulher que goste de ou queira ser prostituta. Não conheço nenhuma família, por muito desorganizada que esteja, que tenha como projecto de vida para os seus filhos serem prostitutas ou prostitutos” [3].

Vivemos numa sociedade em que, apesar dos avanços no campo dos direitos das mulheres, muita gente ainda concorda com uma situação em que a mulher está completamente subalternizada ao homem, é um objecto, um instrumento de prazer. Não há vazio legal. Temos um sistema abolicionista que imperou na Europa durante muitos anos. Porquê este frenesim de alguns países europeus em legalizar a prostituição, afirmando que vão combater o tráfico? É falso, está provado!

Legalizando a prostituição, fomenta-se o tráfico. Há governos que defendem a legalização escudando-se na saúde pública: “Alguns governos pensam que a regularização das casas de passe seria um passo no sentido de maior segurança para a saúde pública”, porém, para Inês Fontinha existe neste argumento um sentido discriminatório, visto apenas as mulheres ficarem sujeitas ao rastreio, para não contaminarem os homens. E ironiza: “A igualdade de género caiu por terra quando a mulher é considerada um objecto”.

Sobre a questão de que quem se prostituir ficará mais protegido se for encarado como trabalhador, Inês Fontinha recusa taxativamente a concepção de que a prostituição é um trabalho e insiste que “vender o corpo” não é um trabalho. Fala-se muito em trabalho digno, mas pergunta-se: Será que isto é um trabalho digno? Defende que se deveria dar um verdadeiro estatuto de vítima a uma prostituta, tal como se deu às mulheres vítimas de violência doméstica, não para as menorizar mas antes para poderem decidir da sua própria vida. A sua desvalorização nas ruas é profunda. Por isso, a ajuda externa é de extrema importância para poder abrir portas, e dizer: há esta possibilidade. O que falta são os apoios necessários para proporcionar reais oportunidades às pessoas.

A luta contra a prostituição como flagelo social, a dedicação total à protecção das mulheres prostituídas e sua reinserção social foi o grande motivo da sua vida. Por esta causa se notabilizou e foi pioneira. Porque esta problematização se impõe nos nossos dias com diversos matizes, replicamos alguns dos seus pensamentos sobre uma realidade que afinal é de muitos milhares de mulheres, e que traduzem seguramente o essencial desta mulher que na primeira pessoa nos conta a sua lancinante experiência.

“Fui aos locais onde as mulheres procuravam os clientes, ruas, bares, casas de passe. Ouvi histórias inabitadas de afectos, de abusos sexuais persistentes pelo pai, pelo padrasto, pelo irmão, por um amigo da família. Escutei a fome, o trabalho infantil, a pobreza que habitou a infância de todas elas. Escutei o sofrimento de corpos desvalorizados pela violência a que foram sujeitos, vi a dissociação/clivagem entre o psicológico e o físico, quando afirmavam “o meu corpo vai para o quarto, mas a minha alma fica de fora”.

Também no 9º Congresso do MDM realizado em Outubro de 2015[4], confirma perante centenas de mulheres, a sua experiência pessoal: “Acompanhei durante estes longos anos cerca de 8000 mulheres e afirmo com segurança que a prostituição viola severamente a dignidade humana e os Direitos Humanos. É contra a igualdade de género e quem defende a igualdade não pode afirmar que a prostituição é uma forma de a mulher utilizar o seu corpo conforme entender. Não! É uma forma de o homem usar o corpo da mulher como entender (…) Aprendi que a mulher se sente uma “coisa”, um objecto, um utensílio para uso do homem, para satisfazer as suas fantasias ” eu sou reciclável, sou usada e posta de parte (…) Aprendi que o homem cliente é proveniente de todas as classes sociais. O local onde procura a mulher é diferenciado consoante o seu poder de compra. Num hotel ou bar de luxo o cliente tem poder económico e exige que a mulher corresponda ao seu estatuto social, na forma de se vestir, de se comportar. Exige que se confunda com o seu próprio estatuto social. Por isso, quando entrei num bar de luxo vi mulheres que pareciam pertencer a classes sociais com poder económico, mas quando me contaram a sua vida, tinham tido percursos muito semelhantes a de outras mulheres que se prostituíam em outros locais, frequentados por homens/clientes com fracos recursos económicos. Vi, assim, a oferta a adaptar-se à procura.”

(…)

“Compreendi que o negócio da prostituição rende ao proxenetismo milhões de euros, porque a prostituição não se reduz a um acto individual de uma pessoa que aluga o seu sexo por dinheiro, é uma organização comercial com dimensões locais, nacionais, internacionais onde existem três parceiros; pessoas prostituídas, proxenetas e clientes.

Aprendi que a prostituição diz sempre respeito à sexualidade… está perante o sexo separado de todo o significado humano, sexo/objecto. Compete-me pôr as minhas dúvidas em relação a esta banalização do sexo (…) Na prostituição todos estes actos íntimos são rebaixados a um nível único – ao de um valor mercantil (…) A sexualidade é vivida como uma procura de prazer á custa do outro. É uma forma de violência”.

Nas Comemorações do 32º aniversário do 25 de Abril, na Covilhã, Inês Fontinha afirmou, ao lado de sindicalistas e de Angela Sabino, também dirigente do MDM, que esta discussão tem tudo a ver com aquilo que foi a raiz do 25 de Abril e os seus princípios, na defesa dos direitos humanos, da igualdade, na diferença entre o homem e a mulher.

Inês Fontinha é uma Mulher de Abril, porque Abril deixou rasto na sua vida e contaminou a sua forma de encarar o mundo.

[1] Entrevista na Rádio Renascença, Programa Diga Lá Excelência, 2006-01-09.

[2] Entrevista a Ana Goulart, A Voz do Operário, Março 2011, p. 8-9.

[3] Entrevista à Rádio Renascença e transcrito por Sofia Branco (Público) e Paulo Magalhães (RR) em 2006-01-09

[4] Texto integral no arquivo MDM

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