Zilda Perdigão Henriques da Gama Carvalho nasceu no Porto a 15 de outubro de 1938 e faleceu em Lisboa em 13 de outubro de 1995.
Investigadora científica

Zilda entra na investigação científica em anos da ditadura – num tempo em que poucas eram as mulheres que faziam da investigação a sua profissão – o que demonstra a sua singularidade intelectual.

Zilda Perdigão Henriques da Gama Carvalho nasceu no Porto a 15 de outubro de 1938 e faleceu em Lisboa em 13 de outubro de 1995. Era filha de Ondina Pinheiro Perdigão Henriques e de Joaquim Azevedo Santos Henriques. Casou com Frederico Gama Carvalho em 13 de Agosto de 1960. O casal teve duas filhas, Inês e Margarida.

Zilda Carvalho era oriunda de uma família da classe média, abastada, com fortes raízes no norte do País, principalmente no Porto. Uma família liberal, progressista e laica.

No Porto, onde estudou, despertou fortes amizades entre a gente da sua geração, amizades de juventude que se mantiveram ao longo dos anos. Zilda Carvalho era uma aluna brilhante. No liceu era conhecida por a Zildinha dos vinte. O percurso escolar da Zilda teve início no ano de 1944, ano em que ingressou no jardim-escola integrado no Colégio Alemão do Porto, que seria mandado encerrar no ano seguinte pelo governo de Salazar. No ano lectivo de 1945-46 foi admitida no Colégio Inglês do Porto que funcionava na Foz do Douro. O colégio não ministrava o ensino primário português aos alunos que não tinham a nacionalidade inglesa, o que levou os pais a procurarem uma solução de ensino particular que conjugasse a aprendizagem das matérias obrigatórias no ensino oficial com o prosseguimento de uma formação básica em língua inglesa. Esta via manteve-se até completar o 2.º ano do ensino liceal. No ano lectivo seguinte ingressou no Liceu de Carolina Michaelis no Porto, na época o único liceu feminino existente na cidade, até concluir o ensino liceal. Entretanto, paralelamente, frequentou o Instituto Britânico do Porto, cuja directora era então a esposa, de nacionalidade irlandesa, do Professor Corino de Andrade, médico e intelectual de grande estatura profissional e cívica.

Zilda Carvalho iniciou os estudos universitários em 1956 na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, onde permaneceu até ao 4.º ano, transferindo-se depois para a Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa onde concluiu, em 1965, a Licenciatura em Medicina com a classificação de 17 valores. O trabalho de dissertação, intitulado Alguns aspectos da fisiologia da nutrição de bactérias do género mycobacterium, foi realizado no Instituto Bacteriológico Câmara Pestana, em Lisboa, tendo obtido a classificação de 20 valores. Nesse ano foi-lhe atribuído o Prémio Câmara Pestana para a melhor tese de licenciatura em Bacteriologia e Parasitologia. Doutorou-se com Distinção e Louvor em Ciências Biomédicas, especialidade de Bioquímica, com a tese Vírus da peste suína africana: regulação da expressão genética e relações entre a replicação viral e a arquitectura celular, apresentada no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, da Universidade do Porto, em 1988. Dedicando-se ao estudo do vírus da peste suína africana publicou diversos artigos científicos, na sua área de especialidade, em revistas internacionais com arbitragem, como autor único ou em co-autoria. Foi co-orientadora de várias teses de doutoramento, e supervisora de teses de mestrado. Participou como co-responsável no curso de Virologia Geral na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, respectivamente, nos anos de 1975-77 e 1993-94, e, nestes últimos anos também, no Programa Gulbenkian de Doutoramento em Biologia e Medicina.

A sua carreira profissional começou no Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC), sediado na Quinta do Marquês, em Oeiras, onde ingressou em 1969 como Assistente de Investigação, ascendendo em 1975 à categoria de Investigador Adjunto e, concluído o doutoramento, à categoria de Investigador, no Grupo de Virologia do Centro de Biologia daquele Instituto. Aí permaneceu até falecer.

Empenhada numa formação científica sólida e diversificada, fez alguns estágios no estrangeiro, numa época em que nada era fácil. Logo em 1966, estagiou, durante cerca de um ano, no Bacteriologischen Serologischen Institut der Städtischen Krankenanstalten Karlsruhe, RFA, em Microbiologia Clínica. No ano seguinte, foi Bolseira do Centro de Biologia do Instituto Gulbenkian de Ciência. Posteriormente, em 1969 e, depois, em 1979, realizou estágios de aperfeiçoamento científico, respectivamente, na School of Biological Science da Universidade de East Anglia, Reino Unido, e no Centre Georges Hayem do Institut de Recherches sur les Maladies du Sang, em Paris.

Fez parte do grupo fundador da OTC- Organização dos Trabalhadores Científicos. Em 1990, é eleita Presidente da Comissão das Mulheres Cientistas da Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos.

Directora-adjunta do Boletim “Ciência e Técnica” da OTC, ao longo dos cerca de 5 anos em que o Boletim foi publicado (1980-84), nele colaborou com diversos materiais. Destaca-se o artigo sobre o “Inverno Nuclear” (Julho de 1984).

Foi membro de várias sociedades científicas (Sociedade Portuguesa de Microbiologia; Sociedade Portuguesa de Microscopia Electrónica e Biologia Celular; Sociedade Portuguesa de Bioquímica).

Com uma actividade politica e social diversificada, foi membro da Comissão de Trabalhadores da Fundação Calouste Gulbenkian (FCG), em 1974 e 1975, e integrou a Comissão Organizadora do Encontro Nacional de Trabalhadores Científicos que teve lugar na Faculdade de Medicina de Lisboa em 29 de Junho de 1974. Aí foi eleita para integrar a Comissão Nacional Pro-Organização dos Trabalhadores Científicos cuja formação foi decidida no referido Encontro e, que conduziu alguns meses mais tarde à criação da OTC -Organização dos Trabalhadores Científicos a qual ainda hoje se mantém activa. Integrou a Comissão Promotora do  Encontro Nacional de Trabalhadores Científicos sobre Armas Nucleares, realizado em Lisboa, no Laboratório Nacional de Engenharia Civil, em 29 de junho de 1982. O Encontro congregou um numeroso grupo de intelectuais e cientistas de nomeada na sociedade portuguesa. Sobre o Encontro escreveu para o jornal local A Voz de Paço de Arcos, dando-se a esse trabalho com o empenho que correspondia à sua convicção de que os trabalhadores científicos devem aproximar-se dos seus concidadãos, levando-lhes o conhecimento dos avanços da Ciência de forma acessível para que possam em conjunto tomar posição sobre eles. Na mesma linha encontra-se a sua participação, em 1994, no 2.º Congresso Caminhos da Sobrevivência — Cruzamento de Olhares, organizado pela Escola Secundária de Henriques Nogueira, de Torres Vedras, com uma comunicação intitulada Genética e Bioética: algumas reflexões sobre o Programa do Genoma Humano, inserida na Secção A Ciência e a Ética — um Novo Olhar.

A situação da mulher na sociedade foi tema central nas suas preocupações e aí interveio com grande dedicação e pioneirismo. A partir de fins de 1990, presidiu ao Comité para as Mulheres Cientistas (Women Scientists Committee), da Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos (FMTC), criado em 1988, passando a integrar o Bureau e o Conselho Executivo da Federação Mundial. Nessa qualidade interveio no Simpósio da FMTC sobre Uma Nova Ordem Científica e Tecnológica Mundial, realizado em Dakar, no Senegal, em Novembro de 1992 com uma comunicação intitulada A Participação da Mulher na Nova Ordem Científica e Tecnológica Mundial. Nessa comunicação sublinhava  que não seria possível encarar uma nova ordem mundial sem a participação das mulheres e, particularmente, das mulheres cientistas, acrescentando que a fraca presença feminina em iniciativas daquela natureza não se devia a indiferença mas a realidades objectivas que importava analisar, a bem de um mundo novo para todos. Ao mesmo tempo enunciava alguns obstáculos que limitam a participação das mulheres e que constituem um real tecto de vidro, uma barreira que impede a mulher de participar em pé de igualdade com o homem nos domínios da ciência e da técnica. Zilda Carvalho referia-se à educação, aos estereótipos sexistas, às tarefas familiares e à feroz competição, como verdadeiros obstáculos à participação da mulher e alertava para o regresso de inquietantes teorias pseudo-científicas, surgidas no campo da neurofisiologia que voltavam a advogar a inferioridade da mulher no que respeita ao raciocínio matemático e à visualização espacial, o que as tornaria menos dotadas para a ciência e a técnica. Zilda Carvalho levantava, portanto, questões de fundo, para a construção de um mundo novo, cujos contornos importa redesenhar com a plena participação das mulheres.

Na qualidade de Presidente do Comité para as Mulheres Cientistas da FMTC, no qual estavam na altura representados 14 países da Europa, Ásia, África e América Latina, desenvolveu uma actividade intensa de contactos e mobilização, em que se incluiu o lançamento de um inquérito sobre a situação das mulheres cientistas nos vários países.

Em Portugal, foi Coordenadora da Comissão para as Mulheres na Ciência criada pela OTC. Nessa qualidade, lançou em 1993 um inquérito destinado a coligir elementos que permitissem “caracterizar melhor a situação portuguesa e identificar as condicionantes e evolução da participação da mulher na actividade científica”. Em Novembro do mesmo ano, participou em Bruxelas, no Workshop on the Under Representation  of Women in S&T, organizado pelo STOA-Scientific and Technological Options Assessment Unit , do Parlamento Europeu, com uma comunicação intitulada “Women in Science in Portugal: Patterns and Trends”.

Em Portugal, também, participou em diversos debates sobre a problemática da mulher na ciência. Em representação da OTC e a convite do Centro de Informação das Nações Unidas em Portugal, participou no Seminário subordinado ao tema Mulher, Ambiente e Desenvolvimento, promovido pelo Conselho Consultivo da CIDM (Comissão para a Igualdade e os Direitos das Mulheres) para comemorar o Dia Internacional da Mulher, em 1992. E, em março de 1993, na comemoração do mesmo Dia Internacional,  participou, a convite do Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas, no debate As Mulheres e o Exercício do Poder, iniciativa do GRAM – Grupo de Acção de Mulheres, daquele Sindicato.

Zilda Carvalho viveu intensamente o 25 de Abril, lembra Leonor Santa Rita, uma amiga que contactou de perto com a cientista nesse período:  “era uma personalidade muito interessante, fazia tudo com alegria, com confiança, imprimia alegria em tudo o que fazia, sempre muito interventiva.” Nos anos em que se fazia tanta coisa, participou também activamente na luta pela Paz. Falando fluentemente o inglês e o francês e com conhecimentos de alemão, ofereceu-se como voluntária para trabalho de tradução e interpretação em diversos encontros internacionais, pós 25 de Abril, com empenho e dedicação.

Zilda Carvalho aderiu ao Partido Comunista Português em 1975, e integrou o Comité Central eleito no XIV Congresso realizado em 1992.

Outra das suas grandes amigas, com a qual Zilda Carvalho tinha muitas afinidades, Claudina Rodrigues Pousada, também cientista, investigadora no Laboratório de Engenharia Genética, do ITQB, lembra, de Zilda Carvalho,  a generosidade e o apoio sempre presentes, em momentos difíceis da sua vida familiar. Zilda dizia que “os amigos escolhem-se, a família herda-se”. A amiga não a esquecerá. Nem esquecerá essa solidariedade entre ambas. Conheceu Zilda, grávida da filha Margarida, hoje professora na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. As duas, Zilda e Claudina, publicaram artigos científicos em co-autoria. Afinal Claudina Pousada fora orientadora de doutoramento de Zilda Carvalho. Ao rememorar os momentos de trabalho, as alegrias e as cumplicidades, destaca as singulares qualidades de Zilda, uma investigadora que tinha o fascínio e o prazer da descoberta, e o que fazia, como se de uma aventura se tratasse, fazia-o com a ideia central de ser útil à sociedade. Claudina Pousada recorda a relação de respeito e amizade que entre ambas se estabeleceu durante o processo de acompanhamento doutoral da sua amiga. Sublinha o rigor de Zilda, rigor reflectido na tese que defendeu brilhantemente no Instituto Abel Salazar, no Porto. Rigor que o Professor João Monjardino bem expressou no elogio do trabalho de tese, de que foi arguente. Em guisa de conclusão, Claudina Pousada acrescenta: “a Zilda, com seus olhos pretos, brilhantes, perscrutadores, o seu cigarro delicioso, era uma pessoa invulgar… Tinha um andar pesado, sólido. Dizia muitas vezes: Tenho que deixar de fumar ”. E acrescenta: “Fui visitá-la ao hospital muitas vezes. Quando morreu fui eu que arrumei o gabinete dela”.

A visão que Zilda Carvalho tinha da sociedade e as suas inclinações políticas amadureceram no período portuense da sua vida, nos anos da juventude, anos de chumbo marcados pela ditadura mas também pela resistência à ditadura. A vivência desses tempos foi determinante na formação de uma consciência social que apurou ao longo da vida e que teve também influência decisiva em opções de vida de familiares próximos. Zilda era uma pessoa com uma excepcional capacidade de análise dos fenómenos sociais e dos comportamentos humanos. De se aproximar dos outros. Suscitar e construir amizades. Com uma notável capacidade de trabalho, a todos os níveis, associada à integridade de carácter e independência de espírito que a distinguiam, sempre privilegiou o trabalho e a acção colectivos no seio das entidades a que se ligou e que, algumas, ajudou a estruturar, quer na esfera profissional quer na da acção social ou política.

Soube educar e transmitir aos que lhe eram próximos, com um sentido pedagógico invulgar, os seus ideais, a sua forma de estar na vida e de contribuir para a sociedade em que vivia. Tinha uma cultura multifacetada que foi enriquecendo ao longo da vida e que abrangia as chamadas “Humanidades” e não apenas a Ciência. Para tal contribuíram os múltiplos contactos e ligações que manteve com personalidades de prestígio, em numerosos países, de vários continentes.

É recordada com saudade e apreço por muitos que com ela tiveram oportunidade de se relacionar, nomeadamente no âmbito da Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos, da Organização dos Trabalhadores Científicos, e em diversas organizações sociais, sindicais e políticas, em Portugal e no estrangeiro.

Agradecemos a Frederico Carvalho, seu marido, as notas e os contactos que nos forneceu e que nos permitiram aproximar mais desta mulher, uma mulher de Abril, que se destacou como investigadora cientifica e foi pioneira no estudo da presença e participação das mulheres na ciência e na investigação científica. Uma cientista que se guiou na acção por uma visão emancipadora das mulheres não só no trabalho no seio da sua própria organização nacional de trabalhadores científicos mas também no plano internacional, onde a presença masculina era preponderante. Ela, que sempre valorizou o papel das organizações de mulheres para elevar a participação da mulher na sociedade, ela que deu particular atenção ao estudo das razões que geram as desigualdades e estigmatizam as mulheres na sociedade, na ciência e na vida.

Se hoje as mulheres têm uma presença significativa na investigação científica, com uma taxa de feminização de 44,7%[1], nos primeiros anos do período mais produtivo da vida de investigadora Zilda Carvalho, essa presença rondava apenas os 30% (ano de 1978) sendo menos de 18% responsáveis por projectos[2], É justo sublinhar a excepcionalidade e a singularidade de Zilda Gama Carvalho como jovem mulher que soube vencer barreiras impostas às mulheres portuguesas pelo fascismo e levar por diante um percurso profissional na investigação cientifica num tempo em que eram poucas as que podiam fazer da investigação a sua profissão. Reconhecendo Zilda Gama Carvalho como Mulher de Abril, reconhecemos a sua singularidade e a força de Abril para o desenvolvimento da Ciência e da Igualdade, abrindo portas, derrubando preconceitos, estimulando o talento de tantas jovens, hoje cientistas de reconhecido valor.

 

[1] Os dados do Inquérito ao Potencial Científico e Tecnológico Nacional (IPCTN) de 2010, num total de 46 255,9 investigadores a  taxa de feminização é de 44,7%  (com variação entre sectores).

[2] Beatriz Ruivo, A mulher e a Investigação científica. Cadernos Condição Feminina n.º21, 1987.

wb_gestao2Zilda Carvalho