A indignação das mulheres e da comunidade perante o Acórdão do Juiz Neto de Moura do Tribunal de Relação do Porto, é generalizada.
A Violência psicológica e física sobre esta mulher, exercida insistentemente e premeditadamente, por dois homens é desculpada porque ela teve um comportamento adúltero episódico. O discurso contido no Acórdão que já é público é uma ofensa à dignidade de todas as mulheres. É um prelúdio da mentalidade arrogante, autoritária, misógina que, sem pudor, mostra as suas garras.
Quanto a nós, MDM, não podemos silenciar que este acórdão extravasa o poder judicial legal e compromete a já debilitada imagem popular sobre a Justiça portuguesa. Por isso consideramos urgente que o Tribunal de Relação do Porto e os dois juízes se retratem perante a opinião pública como forma de prevenir e reparar a injustiça cometida, o abuso de poder, e afirmem inequivocamente o respeito da legalidade democrática.
Importa que o princípio constitucional da igualdade entre mulheres e homens seja replicado sempre que estão em causa processos de direito civil ou penal. Que não sejam invocados argumentos de natureza religiosa, de relativismo cultural ou ideológicos que subalternizam as mulheres com as atitudes sobranceiras e de dominação masculina seja em que esfera for do poder.
Estes dois juízes, Neto de Moura e Maria Luisa Arantes, ao ferirem de ilegalidade constitucional a sentença sobre um caso grave de violência doméstica, com contornos e riscos que não foram avaliados, deram mais uma machadada na credibilidade da Justiça. Uma andorinha não faz a primavera, é certo, mas a repercussão pública destes julgamentos e das atenuantes encontradas para justificar a redução de penas aos agressores fazendo recair a culpa sobre a mulher é uma atitude que se encontra sedimentada em posicionamentos judiciais mas também de discursos políticos retrógrados, que recrudescem e se assemelham. No momento em que vivemos, tal é perigoso e preocupante.
Este é mais um exemplo de quanto as leis democráticas são desrespeitadas nas malhas do poder. Quem está interessado em revisitar o vocabulário dos tempos da Idade Media e dos códigos de família e penal do século XIX para salvaguardar “a honra do homem”, recorrer ao exemplo “da dita mulher honesta”, da adúltera que merece castigo e até lembrar com a maior naturalidade a lapidação em certas sociedades, é assumidamente uma pessoa perigosa, impregnada de preconceitos e disposta a transgredir as mais elementares regras de convivência social.
Independentemente de nos manifestarmos contra esta atitude em outros espaços públicos, o MDM vai apresentar queixa ao Senhor Provedor da Justiça a fim de que possa interceder junto dos poderes públicos para reparar a injustiça do acórdão e intervir pela monitorização da aplicação legal dos direitos das mulheres.
O juiz acolheu de bom tom a versão de uma parte (a dos agressores) que é seguramente “a sua própria”. Neste sentido perguntamo-nos como poderá um juiz (um tribunal) desrespeitar as leis nacionais e internacionais sobre a Violência doméstica e sobre o direito à igualdade entre mulheres e homens na vida? Sendo Portugal um estado laico para quê invocar a Bíblia? Se o papel do Juiz é estabelecer alguma paz social e certeza nas relações jurídicas, como é que este Acórdão persegue o seu fim último que é o de fazer Justiça?
A honra e a dignidade das mulheres está em causa. A constituição da República proclama esse princípio.
São rebarbativas as expressões escritas pelo relator, o juiz desembargador Neto de Moura e assinadas também por Maria Luísa Arantes no acórdão: “Ora, o adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem. Sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte. Na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte. Ainda não foi há muito tempo que a lei penal [de 1886] punia com uma pena pouco mais que simbólica o homem que, achando a sua mulher em adultério, nesse acto a matasse”.
O acórdão é, em si mesmo, uma ameaça aos direitos das mulheres, um desagravo da violência e da agressão de homens sobre as mulheres, um regresso ao direito romano e da Idade Média, em que prevaleceu a anexação do Direito pela Religião e pela Moral, com a prevalência da “justiça bíblica”. É, obviamente, um clamoroso retrocesso civilizacional que merece repreensão pública.
O Juiz não valorizou a situação criada e preconcebida para a violência física, não valorizou o uso de uma moca com pregos, não valorizou a arma com munições, escondida e encontrada na garagem, não valorizou as mensagens e a perseguição continuada, as ameaças de morte nela contidas, nem os seus efeitos traumáticos sobre aquela mulher.
Mas o Juiz atenuou as razões que levaram aqueles homens a fazer o que fizeram em nome da “sua honra” – a honra de homem… Foi a depressão… Foi a intempestuosidade… Foi a traição. Nunca foi a premeditação, que está patente no carrear dos factos.
O argumentário está impregnado de moralismo obsoleto, arcaico e ilícito. Serve-se de uma argumentação eivada de preconceito, desculpabilizadora do homem e, em contraponto, minimizando factos e provas do sofrimento da mulher e da sua condição humana.
Foi agredida com uma moca e foi perseguida mas a culpa é da mulher, a responsabilidade é sua. Honra seja feita ao Ministério Público que não aceitou a primeira sentença considerada injusta pelo Tribunal de Felgueiras.
O Presidente da República não exige pedido de desculpa ao juiz desembargador e ao Tribunal de Relação do Porto? Também valeria a pena em nome de uma sociedade democrática em que as mulheres são sujeitos activos e estão a ser profundamente ofendidas.
A Direcção Nacional do
Movimento Democrático de Mulheres
Lisboa, 24 de outubro de 2017