O seu nome completo é Susana de Sousa Dias de Macedo. Filha de Maria Helena Grilo de Sousa Dias e de António Luís Ernesto de Macedo. Nasceu em Lisboa em 22 de janeiro de 1962.
Realizadora de cinema e professora universitária. Escreve por mão própria o curriculum académico e o seu percurso de vida ilustrando-o como se fora um filme. Reproduzimo-lo procurando respeitar todo o sentido que colhemos na sua conversa. Uma conversa afável, solidária, terna. Na nossa frente, sentimos uma mulher que respirou os ventos de Abril e se mantém inquieta para trazer até nós a memória de tantas vidas de mulheres protagonistas caídas no esquecimento.
Começou a sua formação académica pelo cinema mas não se ficou pela 7.ª arte. Em 1984, faz o Bacharelato em Cinema, na especialidade Imagem, na Escola Superior de Teatro e Cinema. Em 1991, faz a Licenciatura em Artes Plásticas-Pintura na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa. Em 2005, termina o Mestrado em Estética e Filosofia da Arte na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e, em 2014, termina o Doutoramento em Belas-Artes, especialidade Audiovisuais, na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa.
Paralelamente vai fazendo formação complementar. Em Paris, em 2002, faz um Atelier Documentaire et Archives durante 8 meses, em La Fémis, École Nationale Supérieure des Métiers de l’Image et du Son. Tem a frequência dos cursos de Música no Conservatório Nacional (Acústica, Educação Musical, História da Música) e de Piano no Hot-Club de Portugal.
Tem, pois, uma formação pluridisciplinar e ecléctica, o que torna o seu trabalho e sobretudo a sua obra artística não só complexa, rigorosa e de grande qualidade mas fortemente comprometida.
Susana Sousa Dias é actualmente professora de Arte Multimédia na Faculdade das Belas Artes de Lisboa.
Não apagar a memória é a ideia fundamental dos seus dois filmes, nos quais o Estado Novo, mais exactamente o fascismo, é universo temático comum. Em Natureza Morta, Susana de Sousa Dias faz um retrato do Estado Novo usando imagens de arquivo em câmara lenta. Em 48, opta por um novo desafio formal, ao contar as histórias de presos políticos usando apenas fotografias de cadastro e depoimentos. Este foi premiado em vários festivais, incluindo o Grand Prix de Réel[1] e só muito depois foi reconhecido em Portugal, uma prática a que nos foram habituando.
Ouçamos a sua história, contada na primeira pessoa, com a qual relembramos grandes feitos de mulheres anónimas e célebres.
“ Uso o apelido da minha mãe. Fui educada por ela — os meus pais separaram-se tinha eu 9 anos — e não vi porque razão teria obrigatoriamente de escolher o nome do pai. Então decidi começar a assinar Susana de Sousa Dias. Lembro-me de, nos anos 80, quando fiz a minha inscrição na Biblioteca Nacional, uma das funcionárias querer obrigar-me a assinar com o último nome. Eu disse-lhe que assinava com o nome da mãe e ela garantia-me — de forma bastante impositiva e desagradável, aliás — que isso não era possível. Ainda hoje me recordo da sua expressão de estupefacção quando lhe mostrei o bilhete de identidade com a minha assinatura em que apenas figurava o apelido da mãe.
A minha vida profissional não foi afectada pelo fascismo, pois iniciei-a já vários anos após o 25 de Abril. Mas senti na pele as questões inerentes à desigualdade de género. Desde logo quando estudei cinema. Queria ir para a área de Imagem e uma das primeiras coisas que me disseram (o corpo docente era todo masculino) foi que não o poderia fazer, pois essa era uma área só para homens. A justificação que me deram foi que as mulheres não tinham força para pegar no equipamento. Fiquei indignada com a situação e claro que segui imagem, pois não havia nada, a não ser um preconceito, que o impedisse.
Quando se deu o 25 de Abril, eu tinha 12 anos. Entrei na UEC (União dos Estudantes Comunistas) e envolvi-me nas acções estudantis.[autocolantes da UEC] Uma das experiências que foi absolutamente fundadora para a minha formação (e vida) foi a participação nas brigadas de alfabetização e nos trabalhos do campo: apanhei milho, tomate, azeitona, trabalhei nas salinas, etc. Lembro-me de ficar chocada com a violência do trabalho nas salinas, do peso dos baldes cheios de sal. Como é que as mulheres conseguiam carregar aquele peso? Na apanha da azeitona, percebi a diferença de género: só os homens tinham direito a pegar na vara, as mulheres tinham de estar no chão a apanhar a azeitona.
Com 14 anos fiz parte do Movimento Alfa, brigadas estudantis de trabalho e alfabetização. [autocolantes do movimento Alfa e da reforma agrária] Fui para a zona de Mértola, para Corte de Sines, alfabetizar e trabalhar na dinamização cultural e desportiva. [FOTO “Portela da Brava”, jovens do Movimento Alfa (estou lá no meio) com trabalhadores agrícolas; FOTO “Corte de Sines” 3.09.76, onde estou a trabalhar no campo; FOTO “Corte de Sines”-1976, onde estou com as jovens raparigas da aldeia (sou a segunda a contar da direita, em pé)]
Estávamos em 1976. Antes, frequentei o curso que era ministrado aos estudantes que pertenciam ao movimento, na Faculdade de Letras, baseado no método de Paulo Freire. Durante a formação, fomos alertados para as diferenças de comportamento e hábitos sociais, sempre com base no profundo respeito pelo próximo. Lembro-me particularmente de duas das regras básicas: manter a correcção na linguagem e termos atenção, sobretudo nós, as jovens mulheres, para não fumarmos à frente das pessoas, pois não era bem visto. Ou seja, tínhamos de ter muito cuidado para nos integrarmos na comunidade e não correr o risco de inadvertidamente ofender as pessoas. Lembro-me de ter ido a um baile e de, no final da primeira dança, ter ido conversar com um amigo. Ele estava muito aflito e disse-me para eu sair dali depressa pois aquela era a zona dos homens. Eu pensei que ele estava a brincar comigo; foi preciso olhar em volta para perceber que homens e mulheres não se misturavam. A partir daí passei a estar muito mais atenta. Afinal tinha apenas 14 anos e toda a minha vida tinha sido passada em Lisboa. Do resto do país conhecia apenas as zonas onde passava férias, com uma consciência mínima dos hábitos locais. Conhecer o outro lado do país foi uma entrada noutro mundo, que me viria a modificar para sempre.
Os meus dias dividiam-se, nesse mês de Setembro de 76, entre alfabetizar os adultos e dinamizar actividades culturais e desportivas com as crianças. Encenámos com elas uma peça sobre a Catarina Eufémia.
A casa onde fiquei alojada não tinha água, electricidade, não havia casa de banho. Aliás, não havia uma única casa de banho na aldeia. As galinhas entravam-nos porta adentro. Nunca poderia ter imaginado que havia pessoas que viviam nessas condições, condições que eu estava naquele momento a experienciar. Contaram-me histórias de vida, de perseguições do regime, de fome, de dor e de morte: um jovem foi assassinado por ter levado bolotas de um terreno, para ter qualquer coisa para comer. E, no entanto, aquelas pessoas eram de uma generosidade e dignidade ímpares. Foi nesse período que percebi verdadeiramente o que era o fascismo.
Em relação ao MDM, acompanhei desde muito cedo as suas actividades[2]. Aliás, fui ao aeroporto esperar a Valentina Tereshkova, a primeira mulher astronauta, que veio a Portugal por iniciativa do movimento. O autocolante da sua vinda, que adquiri na altura, faz parte da minha colecção de autocolantes desse período. [autocolante Valentina Tereshkova do MDM]
Conheci muitas mulheres que intervieram politicamente antes do 25 de Abril.
Os meus filmes centram-se no período da ditadura e, para mim, uma das questões centrais é o papel das mulheres na resistência. Não só as que militavam num partido, mas também as que, de uma forma ou outra, apoiaram os presos políticos. Lembro-me da primeira vez que falei com a Georgette Ferreira. Estávamos em 2000. A minha finalidade era perceber algo mais sobre a vida das mulheres nesses tempos: aspectos quotidianos, as tarefas laborais e domésticas, o núcleo familiar, a relação com o poder… As perguntas que lhe fazia, mais pessoais, mais íntimas, iam sendo sucessivamente contornadas por respostas, em que a mulher, a pessoa, se apagava perante os ideais colectivos. Em vão eu tentava perceber como era a vida pessoal das mulheres nessa altura, em Vila Franca de Xira, até que, subitamente, Georgette começou a falar de mulheres que ninguém conhece; mulheres que não eram militantes, que nunca tiveram qualquer protagonismo político, que não fazem parte da História — nem sequer da “história das mulheres” —, mas que tiveram um papel crucial na resistência à ditadura. Foi como se uma porta se entreabrisse e eu pudesse ver um mundo totalmente desconhecido, em que as mulheres cuidavam, trabalhavam, protegiam, um mundo feminino só acessível através da memória. É um lado que me interessa muito: aquele que não deixou rasto. Estas mulheres de que Georgette me falou são hoje apenas resquícios da memória dos mais velhos, presenças espectrais no imaginário dos mais jovens. E o que dizer das mulheres na clandestinidade? Há mulheres com acção política visível — Georgette foi uma delas, mas há muitas outras: por exemplo, o caso de uma mulher que passou quase trinta anos na clandestinidade, de cuja actividade não existe traço. Como não foi presa, a sua presença nem sequer está documentada. No 25 de Abril teve de ficar na casa clandestina sozinha. Quando, à noite, ligou a televisão viu o marido a viver a revolução. Quem conhece a história desta mulher? Quem lhe reconhece o seu valor? Há todo um mundo feminino ao qual muito dificilmente teremos acesso se não o procurarmos.
Posso dizer que a minha obra é fruto de Abril. Não só porque procura ir ao passado revelando uma situação à qual a revolução pôs fim, como também por ter sido a experiência de viver a revolução que me fez estar ciente das suas conquistas e do permanente risco da sua perda.
No dia 25 de Abril fiquei em casa todo o dia. Mas fui ao primeiro 1.º de Maio. Foi impressionante. Tinha 12 anos e vi o país mudar de um dia para o outro: nas vozes, nos gestos, nas cores. As pessoas manifestavam-se, gritavam em liberdade, os gestos abriam-se, as cores desabrochavam. Durante um par de anos cantávamos na rua, nos transportes públicos, movíamo-nos com toda a liberdade, vestíamo-nos como queríamos, sentávamo-nos no chão, numas escadas, onde quiséssemos. Lembro-me, poucos anos depois, estava eu de férias na costa alentejana, de assistir a um elemento da GNR a dizer a um grupo de jovens que não podiam estar sentados no chão. Aquilo chocou-me imenso. Foi como se, de repente, o chão tivesse deixado de nos pertencer.
Depois veio a lei Barreto e o final da reforma agrária. Lembro-me de ter lido no jornal a dificuldade dos habitantes de uma aldeia alentejana que, por terem deixado de poder atravessar os terrenos de uma herdade que entretanto fora devolvida aos donos, deixaram de ter acesso ao rio Guadiana. Naquele dia senti o 25 de Abril mais longe. Foi, no entanto, quando estava a realizar o filme Natureza Morta que consciencializei esse processo. A minha vida sempre se fez sob o signo do 25 de Abril, a ditadura pertencia ao passado. Ao fazer o filme, dei-me conta de que afinal a revolução tinha acontecido num dia longínquo e que muita coisa, afinal, ainda permanecia dos tempos da ditadura — sobretudo nas mentalidades, e que ainda hoje se vê no medo que atravessa a nossa sociedade e na inércia que daí advém.
Ao fazer o 48 e ao falar com as pessoas que foram presas e torturadas, como, por exemplo, a Rosa Vizeu que tanto lutou pelo direito às 8 horas de trabalho,era impossível não me questionar sobre os tempos presentes e ter a plena percepção de como tanta coisa que se dá por adquirida se pode perder num ápice.
[1] De acordo com artigo de Manuel Halpern em buala.org.
[2] Vide o conjunto de autocolantes que colecciona.