EM MOVIMENTO

MDM envia à AR posição sobre o Lenocínio face à Petição que reclama a sua despenalização

POSIÇÃO DO MOVIMENTO DEMOCRÁTICO DE MULHERES – MDM
Contributo para uma reflexão sobre a prostituição e o lenocínio face à Petição nº18/XIV/1ª – «Legalização da Prostituição em Portugal e/ou Despenalização de Lenocínio, desde que este não seja por coacção», pela Assembleia da República.

Considerando a entrada na Assembleia da República da Petição nº18/XIV/1ª, entende o MDM fazer chegar à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias e à Comissão de Trabalho e Segurança Social a sua posição sobre o objecto da referida petição, sua proposta de articulado para uma iniciativa legislativa, e relação com os comentários e informações dadas pela 1ª peticionária, na audição a 4 junho de 2020 na 1ª Comissão.
O MDM é uma organização de mulheres que ao longo de mais de 50 anos de existência integra na sua luta e acção a defesa dos direitos das mulheres do nosso país – todas as mulheres – incluindo as prostituídas. Somos abolicionistas. Lutamos contra o sistema prostitucional, e para que no nosso País não se adoptem quaisquer políticas de descriminalização do lenocínio.
A nossa intervenção tem expressão em todo o país, e integra acções em cooperação com organizações nacionais, e internacionais no quadro da Federação Democrática Internacional de Mulheres e do Lobby Europeu de Mulheres. Fazemos parte da Campanha Juntas por uma Europa Livre de Prostituição.
Recentemente, travamos em cooperação com outras organizações uma importante luta que colocou termo à tentativa de criação de uma «Plataforma Municipal para o Trabalho Sexual» na cidade de Lisboa visando consolidar uma estratégia de legitimação da prostituição como um trabalho, colocando uma autarquia à margem da legislação e a abrir caminho para transformar o crime de proxenetismo num negócio legal e legitimar o comportamento dos prostituidores.
Por isso, afirmamos que de forma consistente acompanhamos, denunciamos e combatemos, no nosso país e internacionalmente, incluindo no seio da ONU, as movimentações e os argumentos falaciosos dos proxenetas. Desde logo, quando negam a existência de proxenetismo, promovem a ideia que a prostituição e o tráfico não estão interligados, que existe uma prostituição «forçada» e outra «livre» e que a «legalização» torna a prostituição mais segura para as mulheres e lhes garante direitos laborais e sociais.

PROSTITUIÇÃO – UMA EXPRESSÃO LACERANTE DE VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES, UM CRIME DE ROSTO FEMININO E DE CLASSE.
Consideramos que a prostituição é um sistema organizado para o lucro, um sistema intrinsecamente violento, discriminatório e profundamente desumano. Não é um acto individual de uma pessoa que aluga o seu corpo por dinheiro, mas uma forma de escravatura incompatível com a dignidade humana e com os direitos humanos fundamentais. A prostituição está intrinsecamente ligada às desigualdades entre mulheres e homens, com pesado impacto no estatuto social, na percepção das relações mútuas e na sexualidade.
É um crime de dimensão global, que conta com cerca de 40 a 42 milhões de pessoas em todo o mundo, distintamente feminizado dada a vasta maioria de pessoas prostituídas serem mulheres e menores de idade, em situação de enorme vulnerabilidade, com a maioria de homens como «clientes», sendo consequentemente causa e consequência do agravamento da desigualdade entre mulheres e homens.
A prostituição é um negócio e assim funciona. Cria um mercado com diferentes actores interligados onde proxenetas planeiam, actuam para assegurar e aumentar os seus mercados e maximizar lucros, com um papel chave dos compradores de sexo na manutenção da procura. Todos os actos de intimidade são reduzidos a um valor comercial, e o ser humano é reduzido a mercadoria e a um objecto transaccionável usado pelo “cliente”.
Como reconhecido pelo Parlamento Europeu, este negócio obtém lucros estimados em 186 mil milhões anuais, um montante mais elevado que a totalidade das despesas militares mundiais, e que na Europa, cada proxeneta pode ganhar 110 mil euros, por ano e por mulher prostituída. Um negócio apetecível, com muitas possibilidades de crescimento, que tem servido para o branqueamento de capitais e alimentar a tríade dos negócios criminosos, muito especialmente o crime de tráfico de pessoas.

CONSIDERAÇÕES SOBRE O QUE PRETENDEM: «LEGALIZAÇÃO DA PROSTITUIÇÃO EM PORTUGAL» E/OU «DESPENALIZAÇÃO DE LENOCÍNIO, DESDE QUE ESTE NÃO SEJA POR COACÇÃO».
É nosso entendimento referir, desde logo, que não nos cabe qualquer dúvida na afirmação de que estamos perante mais uma tentativa de quem, de forma insistente e ao longo de anos, e com claro favorecimento no espaço mediático, pretende alterar a legislação em matéria de prostituição, promover proxenetismo e retirar todo o sentido do art.º 169 do Código Penal, pretensão que se revela à saciedade em diversas expressões:
– «Legalizar as Casas…onde é de verdade o Mundo de quem pratica a profissão»;
– «…tenta explicar o ERRO que cometem quando perseguem e fecham as casas de Acompanhantes, perseguindo como se fossem criminosas»;
– «…maior fiscalização por parte da polícia competente no sentido de acautelar que a legislação (proibições) é cumprida, sem dano para quem as cumpre, só como medida de fiscalização, no entanto punir com o encerramento os estabelecimentos que ousem quebrar as proibições impostas»;
– «…não havendo a legalização, pelo menos a despenalização no que respeita ao Lenocínio …»;
– «…quem procura e colabora com as Casas vai de livre e espontânea vontade, é-lhe garantido ambiente de trabalho em segurança como estabilidade à sua integridade física e emocional, são proporcionadas condições que as mesmas sozinhas não conseguiriam e o investimento é total por parte da Dona de Casa, …»;
– «…como em todos e quaisquer negócios tem que existir sempre uma percentagem de lucro para o proprietário…»;
– «…considerando a palavra lenocínio e sendo esta a que constituí Crime pelo seu significado jurídico, se os correios diários-jornais como sites que têm anúncios de convívio não incorrem no mesmo crime, pois recebem dinheiro para a colocação de anúncios com cariz de comércio sexual.».

É claro e inequívoco que a presente petição não pretende qualquer protecção das pessoas prostituídas. Antes as usa, e usa a sua condição, como instrumento ao serviço dos proxenetas para o transformar numa actividade legítima descriminalizando o lenocínio. É, aliás, uma realidade que a 1ª peticionária não esconde, ao assumir a sua condição de proxeneta.

EM PORTUGAL, A PROSTITUIÇÃO NÃO É ILEGAL.
Qualquer pessoa se pode prostituir sendo que sobre ela não recai qualquer penalização. Ao evocar nesta petição a «legalização da prostituição» significa tão só legalizar o lenocínio.
O QUE CONSTITUI CRIME É A PRÁTICA DE LENOCÍNIO.
O quadro jurídico português, inspirado nos princípios abolicionistas, não criminaliza a conduta das pessoas prostituídas, mas o lenocínio.
E importa observar por que razão no quadro do seu Capítulo V – Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual.
O art.º 169º do Código Penal dispõe no n.º 1:
«Quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos”, ou seja, para que se esteja em presença do crime de lenocínio, é necessário que se verifiquem os requisitos:
• que a prática do(s) ato(s) seja(m) concretizados por um terceiro, que não a pessoa que se prostitui;
• que o(s) ato(s) praticado(s) se enquadrem no fomento (estímulo, incitamento), favorecimento (fazer favor, auxílio, ajuda) ou facilitar (tornar fácil, proporcionar os meios) o exercício da prostituição
• que tal ato(s) seja(m) praticado(s) como profissão ou, não o sendo, o seja(m) com a intenção de obtenção de lucro.».

Do enunciado retira-se, numa primeira análise, que o legislador pretende com a incriminação do lenocínio (e já não da própria prostituição) que seja incriminado e punido quem explora e obtém ganhos com a prostituição, já que tal constitui e representa uma privação (violação) da liberdade sexual individual e da dignidade de quem se prostitui, sendo estes bens da liberdade sexual e da dignidade da pessoa humana juridicamente protegidos.
O crime de lenocínio dá, pois, protecção a uma concepção de vida não articulável com a admissão do exercício profissional ou com intenção lucrativa que estimule, favoreça e facilite o exercício da prática da prostituição colocando a pessoa que se prostitui indefesa e em completo desamparo.

Na verdade, na prática do lenocínio, a sexualidade da pessoa que se prostitui, mesmo que resulte de uma “opção livre”, é sempre incentivada, orientada e condicionada pelo proxeneta, desde logo, porque este precisa de garantir o seu lucro, organizando os meios e recursos de que dispõe – entre os quais se incluem as pessoas prostituídas – para atingir o seu propósito.
A utilidade económica retirada da prostituição pelo proxeneta significa a exploração da pessoa prostituída, não só porque se apropria do produto da prática prostitucional, como retira à pessoa prostituída a sua autonomia e liberdade sexual, e nega-lhe a sua dignidade.

QUALQUER FORMATO DE LEGALIZAÇÃO DO LENOCÍNIO E DE REGULAMENTAÇÃO DA PROSTITUIÇÃO OFENDE OS VALORES, OS PRINCÍPIOS E AS NORMAS CONSTITUCIONAIS
O art.º 1.º da Constituição da República Portuguesa determina como princípio fundamental que «Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.»
Significa esta norma que todo o convívio societário e relações sociais que se estabelecem em Portugal têm de observar o valor e princípio da dignidade, qualidade que é inerente à pessoa humana e desta indissociável.
Como já referimos, a dignidade da pessoa que se prostitui, a par com a liberdade sexual individual, é o bem jurídico que cuja proteção é alcançada com norma que criminaliza o lenocínio (art.º 169.º do Código Penal).

QUALQUER FORMATO DE LEGALIZAÇÃO DO LENOCÍNIO E DE REGULAMENTAÇÃO DA PROSTITUIÇÃO OFENDE O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA
O conceito de dignidade é de difícil definição, mas é uma realidade intuída pela generalidade das pessoas, por constituir um valor próprio da convivência colectiva e em sociedade e que a norteia a nível nacional e internacional, e que também está em estreita interligação com a própria segurança jurídica.
A dignidade da pessoa humana é um atributo pelo simples facto de alguém ser um ser humano e, por isso, merecedor de respeito e protecção, independentemente da sua origem, idade, sexo, raça, condição social, situação económica. É, por assim dizer, o valor e critério unificador e orientador de todos os princípios e direitos fundamentais. O valor da dignidade incorpora, também, o merecimento ético do ser humano e, como tal, é orientador de todas as actividades sociais, actuando como um ‘patamar’ protector mínimo, delimitador de todas as acções e condutas.
Uma legalização do lenocínio, que não se concebe, sempre representaria uma ofensa ostensiva à dignidade da pessoa humana, pedra fundamental do regime político e social, e do ordenamento jurídico português.

Dir-se-á, como vem referido no Acórdão 421/16, de 13/07/2017 do Tribunal Constitucional, que se pronunciou sobre a constitucionalidade do art.º 169.º do Código Penal:
«- …as situações de prostituição relativamente às quais existe um aproveitamento económico por terceiros são situações cujo significado é o da exploração da pessoa prostituída;
– Tal perspetiva não resulta de preconceitos morais mas do reconhecimento de que uma Ordem Jurídica orientada por valores de Justiça e assente na dignidade da pessoa humana não deve ser mobilizada para garantir, enquanto expressão de liberdade de ação, situações e atividades cujo “princípio” seja o de que uma pessoa, numa qualquer dimensão (seja a intelectual, seja a física, seja a sexual), possa ser utilizada como puro instrumento ou meio ao serviço de outrem. A isto nos impele, desde logo, o artigo 1.º da Constituição, ao fundamentar o Estado Português na igual dignidade da pessoa humana. E é nesta linha de orientação que Portugal ratificou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Lei n.º 23/80, em D.R., I Série, de 26 de julho de 1980), bem como, em 1991 a Convenção para a Supressão do Tráfico de Pessoas e de Exploração da Prostituição de Outrem (D.R., I Série, de 10 de outubro de 1991).».

A COACÇÃO É PARTE INTEGRANTE DO LENOCÍNIO
Importa saber que a prostituição ocorre no quadro de uma relação triangular em que o proxeneta ou o/a proprietário/a da casa define junto do “cliente” o preço, as condições e a retribuição que a prostituída auferirá, necessariamente inferior àquele. Nas situações em que a prostituída exerce a sua actividade dentro de um estabelecimento, o proxeneta constituiria a sua “entidade patronal”.
Não existe, portanto, uma relação de prestação de serviços em que a prostituída seja uma «profissional independente» como quer fazer crer a peticionante.
Pelo que, e caracterizando-se como esta relação que se pretende estabelecida, por via da petição, como sendo do foro laboral, e sabendo-se das pressões violentas que são exercidas por estes intermediários junto das pessoas prostituídas para que recebam o maior número de clientes e obtenham maiores rendimentos para que os façam ganhar mais, como poderá aferir-se não existir coacção, ainda que esta não seja plenamente admitida?
Veja-se a orientação jurisprudencial, designadamente: Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, Proc. 86/08.0GBOVR.P1, Relator: Eduarda Lobo de 28.03.2012, que refere que o lenocínio constitui prática de proxeneta, na medida em que a sexualidade remunerada da prostituta é incentivada, orientada e condicionada por quem a quer explorar. Sendo que o bem jurídico protegido com a incriminação do Lenocínio é a liberdade sexual individual da prostituta e a sua dignidade pessoal. Pelo que, admitir-se que possa continuar-se a criminalizar as práticas de lenocínio sem o elemento coação, é esvaziar-se o conteúdo do art.º 169.º do Código Penal e abrir-se a porta para uma absoluta despenalização daquele.
Com efeito, a coacção não poderá deixar de ser parte integrante do tipo de crime de lenocínio, não podendo ser dele desassociada. Nenhuma Mulher acede à ou exerce a prostituição de livre vontade, podendo aceder ou exercer outra que lhe dê rendimento suficiente, e muito menos quando o exercício da actividade esteja submetido pelo menos a ordens e instruções de superiores e em situações que revistam uma maior gravidade, a uma verdadeira exploração.

Tal como a coacção não se pode contrapor à “livre determinação” e “consentimento” na prostituição como muitas vezes se quer fazer crer. Note-se que o consentimento não faria dela um acto menos cruel ou menos violento. Na prostituição, o consentimento não é simétrico. O comprador consente dar uma quantia em troca do acesso ao corpo da mulher ou criança. Ela, a pessoa prostituída precisa desse dinheiro como meio de subsistência, “consente” por necessidade económica numa relação repetida com um número infinito de desconhecidos. Sujeita-se à repetição quotidiana de gestos sexuais não desejados, que lhe são pedidos ou exigidos, muitas vezes com violência pelos “clientes”, de quem não se podem queixar. É uma vida de permanente sobressalto. Uma vez inserida no sistema, a possibilidade de uma mulher recusar um “cliente” não é “fácil” como se apregoa. Ela não escolhe nem recusa, porque não sabe o que vai encontrar para acautelar ou prever o desenrolar e o conteúdo do acto. Sujeição e não liberdade de escolha, nem tão pouco liberdade sexual, pois quem neste caso faz o quer do corpo da mulher é o “cliente”.
O consentimento não significa também por isso escolha ou aceitação. É uma resposta a uma situação de necessidade económica ou afectiva, resultante das fragilidades e vulnerabilidades também associadas aos motivos que levam à entrada no dito «mundo» da prostituição, onde a 1ª peticionária reconhece que «infelizmente» entrou depois de ter passado por empregos públicos, e para onde quer «evitar que a sua filha de 12 anos venha a entrar».
É uma hipocrisia defender a legitimação da prostituição na base do consentimento, uma vez que o consentimento / aceitação esconde a tradição de opressão das mulheres que, todavia, perdura. Elas aceitam a violência? Consentem ser maltratadas? Elas aceitam o stress permanente em que vivem? Aceitar seria o mesmo que considerar como legal a violência doméstica ou de género, se consentida ou não consentida.
Não é relevante o argumento do consentimento em matéria que configure violência ou violação dos direitos humanos.
ACRESCE AINDA QUE PROSTITUIÇÃO NÃO SE CONFUNDE COM LIBERDADE SEXUAL
Cada ser humano dispõe do seu corpo, em liberdade, fazendo com o corpo, que é seu, o que entende e pretende. Porém, ao dispor do seu corpo, o ser humano fá-lo por si, segundo as suas próprias regras, em opção livre e voluntária, incluindo no domínio da sexualidade que se insere na denominada liberdade sexual.
Muitos asseveram que a prostituição constitui um exercício de autonomia e liberdade sexual das prostituídas. Porém, a liberdade sexual não pode ser interpretada como uma licença para desrespeitar as mulheres. Respeitar o homem e a mulher enquanto pessoa humana, titular de direitos fundamentais inalienáveis, consistirá em assegurar um direito fundamental à igualdade. A prostituição não é um fenómeno de sexualidades recíprocas, não se pode negar a dimensão desigual da pessoa que paga e da pessoa que é remunerada, nem se pode negar a dimensão imprevisível desse “contrato”.
A normalização da prostituição tem um impacto importante na percepção que homens, mulheres e jovens têm da sexualidade e das relações entre mulheres e homens; na prostituição, todos os actos íntimos são rebaixados ao valor mercantil, sendo o ser humano reduzido a uma mercadoria ou utensílio à disposição do cliente; como consequência dessa desigualdade perpetuam-se os estereótipos de género, um pensamento estereotipado sobre a disponibilidade de venda de sexo pelas mulheres, e da ideia de que o corpo de qualquer mulher ou rapariga está “à venda” para satisfazer a procura masculina de sexo.

Contudo, no lenocínio, a pessoa prostituída embora possa «querer, por sua vontade e opção», a prática de actos sexuais indiferenciados e até pagos, sofre sempre a ingerência do proxeneta. Com efeito, o simples proveito económico obtido ou a obter pelo terceiro que exerce o lenocínio revela a interferência na esfera individual e íntima de quem se prostitui, desde logo pelo uso da intimidade da(o) prostituída (o) para os fins dele (terceiro, proxeneta).
Consequentemente, pode-se concluir, com segurança, que o lenocínio afecta, além do devido, a autonomia e liberdade de quem se prostitui.

A PROSTITUIÇÃO ANDA DE MÃOS DADAS COM A POBREZA E A NECESSIDADE DE ANGARIAÇÃO DE MEIOS DE SUBSISTÊNCIA.

Não se pode ignorar que as pessoas prostituídas são esmagadoramente mulheres e meninas oriundas de grupos raciais, étnicos e económicos desfavorecidos. São pessoas particularmente vulneráveis a nível económico, social, físico, psicológico, emocional e familiar e que correm um maior risco de violência e danos, mais do que em qualquer outra actividade; que os problemas económicos, a pobreza e outras situações de exclusão e de maior vulnerabilidade (como das pessoas com deficiência e dos jovens integrados no sistema de protecção de menores) são as principais causas de prostituição entre jovens mulheres e raparigas menores; que os contextos de crise económica e social, com o aumento do desemprego, promovem a entrada de mulheres e jovens no negócio da prostituição para ultrapassar situações de pobreza e de exclusão social.
Uma atenção particular sobre o quadro da COVID-19, a partir do que sabemos sobre o impacto da última recessão económica no maior número de homens, mulheres e raparigas menores, incluindo as mulheres migrantes, forçados a prostituir-se.
Por todas as razões expostas, não é admissível, em nenhum contexto, permitir que a intimidade e a sexualidade individuais possam ser utilizadas como meios de subsistência.
As (os) prostituídas (os) merecem toda a protecção das entidades, em particular do Estado, cabendo ao Governo a implementação de medidas práticas e eficazes de protecção, conforme lhe é imposto pelo art.º 9.º da Constituição da República Portuguesa, designadamente nas alíneas b), d), f) e h), pois a protecção a que o Estado, particularmente através do Governo, está obrigado a cumprir, emerge directamente do princípio da dignidade da pessoa humana, reflectida nas liberdades e direitos fundamentais constitucionalmente consagrados.

A QUESTÃO DA PROSTITUIÇÃO COMO PROFISSÃO E TRABALHO (CONFORME TERMOS NA PETIÇÃO)
Na petição, incoerentemente, mas que se compreende visto o que se pretende é a legalização empresarial do lenocínio, vem apontado como «medidas a tomar»: «Contratos de trabalho com respetivos descontos…e passados recibos verdes ao dia…»
Estamos, assim, em presença de uma situação reveladora do ditado popular “gato escondido com o rabo de fora”. Com efeito, é sobejamente sabido que o contrato de trabalho expressa uma relação de trabalho ou serviço diferente da que é revelada por pessoa sujeita a recibos verdes.
De uma leitura do teor da petição retira-se que esta não pode ter sido elaborada e apresentada pelas(os) prostituídas(os), muito embora se saiba que todo o opressor necessita ter no grupo dos oprimidos elementos que atuam como seus cúmplices. O que é, em concreto, peticionado apenas beneficia os proxenetas e o lenocínio.
Os mentores da petição só podem ser os próprios proxenetas e estes não estão interessados na condição das(os) prostituídas(os).
Nesta petição demonstram-no, embora para gerar o engano, ao utilizarem as prostituídas e da sua condição de vulnerabilidade para alcançarem os seus propósitos.
Muito embora no texto da petição existam outras além das expressões acima transcritas, que se inserem no mesmo período e parágrafo, constata-se que o que é pretendido na relação laboral que reclamam é tão somente a consagração da precariedade da situação das(os) prostituídas(os) – o que conduz à manutenção da sua vulnerabilidade no que respeita à situação económica e social.
A prostituição não pode ser tida e regulamentada como um trabalho, muito menos como um trabalho subordinado (por conta de outrem), porquanto o trabalhador ao exercer as suas funções para um patrão, exerce-as sob a direcção, orientação e fiscalização deste – características que numa relação laboral de cariz prostitucional nunca poderiam ser admissíveis, por contrárias à autonomia e intimidade individuais e à liberdade sexual, isto para além das questões que a dignidade da pessoa humana suscita.
A proposta de tal regulamentação teria também como pressuposto o incumprimento por parte do Estado dos seus deveres de protecção, o que colocaria o próprio Estado como:
– Colaborador directo na prostituição e exploração da pessoa prostituída.
– Incumpridor da defesa da ordem jurídica assente nos valores da justiça e da dignidade da pessoa humana.
– Interessado (financeiramente) na prostituição pela cobrança de impostos.
Na petição alega-se a pretensão «que a prostituição fosse considerada uma profissão com descontos e regalias sociais como qualquer outro trabalho…», porém, dada a consagração da precariedade que reclamam – recibos verdes diários – todo o ónus (descontos) ficaria a cargo das(os) próprias(os) prostituídas(os), por ser este o regime aplicável, mantendo-se assim intactos os proveitos adquiridos pelos proxenetas.
Igualmente, ao reclamarem a obrigatoriedade de exames médicos com a «obrigatoriedade de exames de 6 em 6 meses por parte de quem colabora com estes estabelecimentos, afixando-os em dossier no local» comprova-se que:
– A pretensão é a de legalização do lenocínio, com total desprezo pela condição das(os) prostituídas(os), uma vez que imputam o ónus da obrigatoriedade de exames médicos integralmente para quem pratica a prostituição, ignorando totalmente a sua saúde que pode ser afetada por um qualquer “cliente”. Isto, porque tal obrigatoriedade, conjugada com a afixação dos resultados médicos «em dossier no local», denuncia que o que subjaz a esta medida é segurança do cliente que recorre a tais serviços e dos bordéis.
– Não é o trabalho com direitos que pretendem ver reconhecido, já que não as(os) chamam de trabalhadoras(es), mas apenas a elas e eles se referem como colaboradores – «…por parte de quem colabora com estes estabelecimentos …».
– Aliás, em todo o texto da petição, muito embora se utilize as palavras trabalho e labor, nunca é aplicada a de trabalhador(a) quando se referem às pessoas que se prostituem, mas sim «profissionais», «que colaboram» ou «colaboradoras».
A pretensão da petição sobre a obrigatoriedade de realização de exames médicos bianuais às “profissionais do sexo” equivale à determinação do regime fascista que impunha às «matriculadas» visitas sanitárias quinzenais e a obrigação de habitar e praticar a actividade em zonas “convenientes”, não devido à sua própria saúde, mas apenas para não contaminar os clientes, estes sem quaisquer obrigações.

A PROSTITUIÇÃO É VIOLÊNCIA SOBRE AS MULHERES E AS CRIANÇAS
A Declaração dos Direitos Humanos reconhece a prostituição como uma violação dos direitos humanos e proíbe especificamente a exploração na prostituição de outrem, incluindo o proxenetismo, a solicitação e a exploração de bordéis.
Acresce, que de acordo com convenções das Nações Unidas a que o Estado Português está vinculado – a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres e a Convenção para a Supressão do Tráfico de Pessoas e da Exploração da Prostituição de Outrem – os Estados têm uma obrigação directa e vinculativa para se oporem à normalização da prostituição e trabalhar no sentido da eliminação da sua exploração. Entre outros, estes instrumentos são taxativos na consideração da prostituição como uma forma de violação dos direitos humanos de mulheres e raparigas.
A dimensão da prostituição a nível mundial é hoje incomensurável de tal forma que é considerada como escravatura do século XXI.
Dados recentes das Nações Unidas (2/12/2019) indicam que para cada mil pessoas no mundo, existem 5,4 vítimas da escravidão moderna. Cerca de 25% das vítimas deste tipo de abuso são crianças. Mulheres e meninas são desproporcionalmente afectadas, representando 99% das vítimas na indústria comercial do sexo, na sua esmagadora maioria em processos que configuram crime de tráfico de pessoas.
É para chamar atenção deste flagelo que se instituiu o Dia Internacional para a Abolição da Escravidão (2 Dezembro), assinalando a data da adopção pela Assembleia Geral das Nações Unidas da Convenção para a Supressão do Tráfico de Pessoas e da Exploração da Prostituição de Outrem, centrada na luta pela erradicação das formas contemporâneas de escravidão, como tráfico de pessoas, exploração sexual, casamento forçado e recrutamento forçado de crianças para uso em conflitos armados.
Acredita-se, portanto, que a luta erradicará as formas contemporâneas e emergentes de escravidão. A escravidão não é apenas uma relíquia histórica. Segundo a Organização Internacional do Trabalho, mais de 40 milhões de pessoas em todo o mundo são vítimas de escravidão.
Embora a escravidão moderna não esteja definida em lei, o termo é usado para abranger práticas como trabalho forçado, servidão por dívida e tráfico de seres humanos, relativas a situações de exploração que uma pessoa não pode recusar ou deixar devido a ameaças, violência, coerção, engano e abuso de poder.
É imperativo não esquecer que a prostituição e o tráfico de pessoas são crimes indissociáveis, ambos incompatíveis com a dignidade da pessoa humana e com os direitos humanos.
É o próprio Parlamento Europeu que não hesita em apontar o impacto aos países que despenalizaram o lenocínio regulamentaram a prostituição na relação com o aumento do tráfico de pessoas com fins de prostituição e exploração sexual. É cada vez mais evidente que o mercado da prostituição fomenta o tráfico de mulheres e crianças. O relatório Sigma Huda (2006) da relatora especial das Nações Unidas sobre o tráfico de pessoas, em especial de mulheres e crianças, salienta o impacto directo das políticas relativas à prostituição no aumento da dimensão do tráfico de seres humanos. O tráfico funciona como uma forma de introduzir a oferta de mulheres e raparigas menores nos mercados da prostituição, são forçadas a prostituir-se um alarmante número de crianças (as Nações Unidas consideram crianças com idades entre os zero e os 18 anos). No caso das mulheres vítimas de tráfico, são conhecidas as pressões sobre a família no país de origem, que podem ser psicológicas e insidiosas, mas sempre acenando com a possibilidade de uma vida melhor.
A aparente preocupação da petição e da peticionária com os menores de 21 anos, e com as mulheres e crianças estrangeiras em situação irregular no nosso país, não deve ser entendida como uma preocupação do dano devastador que o seu negócio produz na vida destas pessoas.
Apesar de minimizado, é admitido o dano que a prostituição causa às pessoas prostituídas, mas também se omite o impacto que tem na violência contra todas as mulheres da normalização da prostituição.
De acordo com relatório do Parlamento Europeu (A7-0071/2014), entre 80 a 95% das pessoas que se prostituem sofreram algum tipo de violência antes de entrar na prostituição (violação, incesto, pedofilia), 62% relatam ter sido violadas e 68 % sofrem de perturbação de stress pós-traumático, uma percentagem semelhante à das vítimas de tortura. Os dados europeus revelam ainda que os homens que compram sexo apresentam maior probabilidade de cometer actos sexualmente coercivos sobre mulheres e de exercer outros actos de violência contra mulheres.
A prostituição é também um problema de saúde com impactos brutais nas pessoas que se prostituem, na maior probabilidade de sofrer traumas e perturbações na saúde sexual, física e mental, de toxicodependência, alcoolismo, perda de auto-estima, com uma taxa de mortalidade superior à da média da população geral, e com grande risco de doenças transmissíveis, devido às exigências dos clientes de sexo comercial sem protecção. São conhecidas as queixas de stress e outros desequilíbrios, e o relato de processos mentais de grande gravidade como é a dissociação, que mina a estrutura da personalidade como acontece nos processos de esquizofrenia. Algumas sobreviventes relatam: «O meu corpo estava lá mas a minha cabeça estava noutro sítio».
Estes são aspectos maiores que não podem ser escamoteados.
PROTEGER AS MULHERES E AS CRIANÇAS – O DIREITO À SAUDE, À EDUCAÇÃO, À PROTECÇÃO SOCIAL, AO TRABALHO E À DIGNIDADE.
Temos vindo a assistir a perigosas derivas de regulamentação da prostituição, glamorizando-a para simultaneamente encobrir o agressivo e violento sistema prostitucional e o lenocínio como agente determinante para manter a prostituição e suas nefastas consequências.
Mas sempre que existem contextos sociais e políticos que se julgam favoráveis, a perspectiva do negócio e do lucro volta à carga com enganadoras subtilizas de linguagem e terminologia, adaptadas a cada contexto, por vezes disfarçada de “coragem”, e até de “altruísmo” em representação dos interesses das demais. Como refere a 1ª peticionária ela é «a voz das mulheres prostituídas» que querem ter voz. Em boa verdade, a 1ª peticionária é «Dona de duas Casas», ou seja, assume-se como mulher de negócios, mesmo sabendo que é uma actividade criminosa como agente, intermediária e proxeneta. Na definição do dicionário, é alguém que procura e administra clientes para uma “prostituta”, para além de facilitar a sua prostituição, seja em bordéis, apartamentos ou na rua, de modo a ganhar uma parte dos seus rendimentos, «50%» segundo a própria.
Despenalizar o lenocínio não constitui uma solução para proteger da violência e da exploração mulheres e raparigas vulneráveis, antes produz um efeito contrário, na medida em que as expõe a um nível mais elevado de perigo de violência e promove, o crescimento dos mercados da prostituição que, por sua vez, se traduz num maior número de casos de abuso de mulheres e raparigas menores.
Várias organizações, entre as quais o MDM, repetem de há longa data a exigência de políticas sociais de proteção e reinserção social das mulheres e crianças prostituídas, em nome da dignidade, igualdade de direitos, justiça social e em prol do desenvolvimento humano.
Neste âmbito, toda a articulação é necessária para agir com as diferentes instituições sociais e políticas, nomeadamente escolas, universidades e nas comunidades em geral. E também, intervir nos media e em toda a comunicação social incluindo na Internet e Redes sociais.

O Movimento Democrático de Mulheres tem insistido na necessidade de medidas para proteger mulheres e raparigas:
• Políticas que assumam e reconheçam a prostituição como uma grave forma de violência, uma realidade indissociável das desigualdades sociais e das desigualdades entre mulheres e homens que persistem na sociedade e que são causadoras de intoleráveis formas de violência, opressão e agressão da dignidade e dos direitos das mulheres e das crianças;
• Políticas comprometidas com o objectivo do combate à prostituição nas suas causas, na penalização do crime e no apoio e protecção às vítimas.
• Políticas que promovam a autonomia e emancipação das mulheres, desde logo o acesso ao trabalho com direitos e a salário igual.
• A implementação de um Plano de Combate à Exploração na Prostituição. Já aprovado na Assembleia da República (vidé resolução 47/2013 de 8 de março) que garanta, nomeadamente, o acesso imediato das pessoas prostituídas a apoios que lhes permitam a reinserção social e profissional; ao acolhimento dos filhos, acesso à habitação, protecção e assistência psicológica, médica, social e jurídica, e a programas de saída.
• Reiteramos – os programas de saída são um imperativo. Sabemos que a maioria das pessoas que se prostituem gostariam de deixar a prostituição, mas sentem que não são capazes de o fazer. Insistimos em que estas pessoas necessitam de apoio adequado, sobretudo assistência a nível psicológico e social, para sair das redes de exploração sexual e das dependências que estão frequentemente associadas a estas.
O MDM insta o Estado a financiar organizações que operam no terreno dando apoio e proporcionando estratégias de abandono da prostituição, a disponibilizarem serviços sociais inovadores para as vítimas da exploração sexual, incluindo mulheres imigrantes e em situação irregular, através da análise das necessidades e riscos individuais, por forma a receberem a assistência e a proteção adequados, e aplicar medidas de apoio às mulheres e menores vulneráveis para abandonar a prostituição, e construir um projecto de vida credível e viável para as mulheres prostituídas.
Por fim, queremos reafirmar que esta petição não representa um acto de “coragem” a valorizar, mas um acto que afronta os princípios do Estado de direito democrático.
Exigimos coragem na defesa e no cumprimento da Constituição da República Portuguesa e o respeito pelos valores aí consignados da dignidade, da igualdade, dos direitos humanos, dos direitos das mulheres, dos direitos das crianças, da justiça social e do desenvolvimento humano.
Defendemos e defenderemos a manutenção da previsão legal do crime de lenocínio nos termos redigidos no art.º 169º do Código Penal, que determina a ilegalidade das “casas de trabalho” ou “casas de acompanhantes”, e não acompanhamos as pretensões da petição.

A Direcção Nacional do
Movimento Democrático de Mulheres
Lisboa, 22 de junho de 2020

wb_gestao2MDM envia à AR posição sobre o Lenocínio face à Petição que reclama a sua despenalização

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