Maria Luísa Palhinha da Costa Dias nasceu em Coimbra em 15 de outubro de 1916 e morreu em Lisboa a 9 de maio de 1975.
Médica

Depois do 25 de Abril, teve em Varsóvia um acolhimento ver-dadeira-mente emo-cio-nante

Maria Luísa Palhinha da Costa Dias, médica de profissão, era natural de Coimbra. Nasceu em 15 de outubro de 1916 e morreu a 9 de maio de 1975. Nascida de uma família de origem social elevada, era irmã de Augusto da Costa Dias conhecido antifascista, escritor e investigador da literatura e cultura portuguesas. Os outros dois irmãos eram empresários das conservas Tonecas.

Pertenceu ao Socorro Vermelho nos anos 30 do século passado e aderiu ao Movimento de Unidade Democrática (MUD) em 1945.

Em 1947, segue com o seu companheiro Pedro Soares, professor liceal, para Moçambique onde esteve três anos durante os quais leccionou, regressando a Portugal no início de 1950. Entrou na clandestinidade, já como membro do PCP, com o seu companheiro, em 1951.

Ela própria descreve a vida na clandestinidade como “um jogo que exige muito autodomínio, muita perspicácia, muito sentido psicológico e a arte de olhar os factos e as pessoas com os olhos da sua realidade e … da nossa”[1]. Em Crianças Emergem da Sombra,  publicado depois da sua morte, os seus contos são a transposição da vida de muitas crianças na clandestinidade e, mesmo, a vida de algumas dentro da prisão de Caxias acompanhando suas mães, situação que a própria Maria Luísa da Costa Dias conheceu e testemunhou. Vidas muito difíceis de crianças que foram educadas “para não contar isto ou aquilo”, o que não deixava de ser no plano formativo “um factor contraditório, complexo e difícil de controlar”[2].

Presa pela primeira vez em 1953, Maria Luísa, muito debilitada, sai da prisão de ambulância, após uma grande campanha nacional e internacional devido à precária saúde em que se encontrava. Volta a ser presa em 1958 e torturada pela PIDE, sendo solta em 1962.

Volta à clandestinidade em 1963 e parte para o estrangeiro em trabalho do PCP. Ao todo, esteve sete anos na prisão e mais de vinte na clandestinidade. Pedro Soares, ele que teve vários cargos de direcção no PCP, esteve também várias vezes preso. Esteve no Aljube, em Caxias, em Peniche tendo sido um dos nove da célebre fuga de Peniche com Álvaro Cunhal, em 3 de janeiro de 1960. Duas vezes foi deportado para o campo de concentração do Tarrafal onde foi submetido a trabalhos forçados.

Na alvorada de Abril, representava as mulheres portuguesas na FDIM, organização internacional de mulheres criada em 1945, sob os destroços da 2.ª Guerra Mundial, integrando a sua Direcção. Pertence ao Movimento Democrático de Mulheres desde a sua fundação. Quando  faleceu em 1975, pertencia ao Executivo Nacional do MDM e ao Secretariado da Comissão Executiva de Lisboa. Foi  uma das organizadoras da visita de Valentina Tereshkova, a primeira mulher astronauta, que vem a Portugal a convite do MDM para participar nas comemorações do Ano Internacional da Mulher que se celebrou em 1975. O Comício de Homenagem que teve lugar no Pavilhão dos Desportos em Lisboa foi presidido por Maria Lamas contando também com a presença na mesa de Álvaro Cunhal. Várias individualidades de largo espectro político estiveram no jantar de recepção.

O seu interesse pelas coisas das mulheres vinha de longe, e é esse labor que a leva a participar em reuniões internacionais de grande amplitude. Para além de outras ídas ao estrangeiro para encontros de mulheres, em 1969 integrou a delegação que participou no Congresso Mundial das Mulheres, realizado em Helsínquia de 14 a 17 de Junho. Chefiada por Sofia Ferreira, a delegação era ainda composta por Maria da Piedade Morgadinho, Cecília Areosa Feio e Maria José Ribeiro[3]. Ainda o manto da noite fascista perdurava, já o MDM rompia silêncios e as mulheres portuguesas mostravam ao mundo a sua ousadia, o seu grito de libertação.

Debruçando-se sobre a vasta actividade do MDM antes e depois do 25 de Abril, na senda da solidariedade e reciprocidade com as mulheres do mundo, dizia em Conferência de Imprensa “A emancipação da mulher está profundamente ligada com a vitória sobre as forças de retrocesso social que se opõem à paz, à coexistência pacífica entre países de regimes políticos diferentes, à cooperação entre os povos.”[4]

Esta mulher que perdemos tão cedo para a luta deixou-nos imagens da sua alegria imensa com o 25 de Abril. Num tempo em que a RTP espreitava a movimentação das mulheres e dava voz ao MDM, um tempo que foi curto, mas de inegável reconhecimento pela audácia destas mulheres, Maria Luisa da Costa Dias é entrevistada quando regressava de Varsóvia do Congresso da FDIM, de cuja direcção fazia parte.

Acompanhada de Luisa Amorim e de outras aderentes do MDM, responde ao jornalista da RTP que queria saber qual tinha sido o acolhimento à delegação portuguesa naquele país onde pela primeira vez Maria Luísa Costa Dias ia em liberdade. De sorriso amplo, alegre e voz intrépida, mas emocionada, responde pausadamente, Foi um acolhimento ver-dadeira-mente emo-cio-nan te. Ao rever estas imagens de arquivo ainda nos arrepiam a sua força, a sua simplicidade e ternura.

Maria Luísa abriu portas na luta pela emancipação das mulheres, tal como era vista no seu tempo, ligada à luta pela liberdade e contra a opressão das ideias. Temos a sorte de algumas mulheres que com ela conviveram, ainda nos poderem contar de viva voz a experiência de vida e de luta que com ela travaram apesar dos momentos intranquilos e de inquietude. Recordam a imagem que guardam dela, uma memória de sobressaltos, feita debaixo de mil cuidados e receios. E porque a luta não se faz, nem nunca se fez, com uma só mão e um só corpo, e porque as páginas que escrevemos e o mundo que tecemos são escritos a muitas e muitas mãos, ao longo de tempos. Os testemunhos de outras mulheres que contam a história também fazem parte dela. Maria da Piedade Morgadinho e Margarida Tengarrinha, felizmente entre nós, ajudam-nos a reconstruir a história de Maria Luísa da Costa Dias. Ao fim ao cabo também escrevem e são parte da história das Mulheres de Abril.

Maria da Piedade Morgadinho conheceu-a em Lisboa em casa de familiares, tendo com ela uma convivência ocasional com amigos comuns. Guarda dela a imagem de uma mulher de grande sensibilidade relativamente às crianças e de grande fervor religioso. Na prisão e nas casas clandestinas sempre esteve acompanhada da sua Bíblia que lia todas as noites. Fiel à sua religião, rezava perante uma imagem da virgem com um menino ao colo. Sempre que o seu companheiro saía de casa, rezava porque o sentia assim mais protegido.

Os fragmentos de memórias que Margarida Tengarrinha nos traz, revigoram também os traços da personalidade de Maria Luísa que é vista por quem a rodeava como uma mulher de afabilidade natural e compreensão humana, que lhe granjearam a simpatia e o respeito de todos, mesmo em condições muito tensas e adversas. Tendo vivido com o casal cerca de quinze dias na casa clandestina situada em Leça da Palmeira, onde se fazia o jornal do Partido, Margarida diz que, pelo que lhe foi dado observar, já nessa altura, a Maria Luísa executava trabalho de redacção, com muita competência.

Uma marca da sua singularidade era a sua fé religiosa que não passava despercebida a ninguém, e é bem ilustrada nesta breve descrição de Margarida Tengarrinha.

“Na simplicidade espartana da instalação de uma casa clandestina, chamou-me a atenção uma belíssima reprodução de um quadro de Rafael representando a Virgem com o Menino ao colo, que ela tinha no quarto e me disse ter-lhe sido oferecida pelo marido.

Num dia em que Pedro Soares tinha acabado de sair para um encontro de rua, bati à porta do quarto e entrei, para tratar com a Maria Luísa de qualquer problema com a embalagem dos materiais da redacção, que estávamos a fazer aceleradamente, e deparei com ela ajoelhada junto da cama, a rezar, virada para a imagem da Virgem. Pedi desculpa pela intromissão e então ela disse-me que, sempre que o Pedro saía para as suas tarefas, pedia a intercessão de Nossa Senhora para o defender de ser de novo preso.

Recordei este episódio quando, depois da trágica morte dos dois num desastre cuja origem ficou mal averiguada, fiz parte do turno da guarda de honra na manhã do seu funeral. O oficiante da missa de finados que, a pedido do Partido Comunista, ali teve lugar, frei Bento Domingues, antes de iniciar a cerimónia veio perguntar-me se deveria fazer a encomendação pelos dois, ou só pela Maria Luísa, pois ela era católica e ele não. E foi por recordar esse episódio, a profunda compreensão do Pedro Soares e a união do casal, até na morte, que disse a Frei Bento que unisse ambos na sua encomendação. O que ele fez, de uma tal forma, que a todos nos emocionou”.

Morreu com o seu companheiro de sempre num estranho acidente de viação no dia 9 de Maio de 1975. O elogio fúnebre feito por Álvaro Cunhal vem comprovar a autenticidade de uma mulher que lutou pelos direitos das mulheres, pela liberdade, por Abril, sem vacilações.

Católica e comunista, que de um alto exemplo de dignidade e de firmeza moral, soube vencer de cabeça erguida as perseguições, a clandestinidade, a tortura e a prisão, acrescentando mais à frente no seu discurso (…) as vidas dos revolucionários valem como sementes na luta dos povos[5].

Nos anos 60, são editados pela Portugália, três livros traduzidos do francês ou adaptados por si. São eles, Flores da Escócia em 1965, A Bela e o Monstro em 1968 e Quem procura sempre alcança em 1966, que se podem hoje encontrar na Biblioteca Nacional.

A sua biografia prisional encontra-se no Arquivo Geral dos Presos da PIDE, Livro 107 registo 21393, na Torre do Tombo e revela bem a crueza da investigação, a rudeza dos carcereiros e esconde, e outra coisa não esperaríamos, a coragem desta mulher face às condições em que a mantiveram na prisão. É uma biografia feita para castigar. Ignora naturalmente os sentimentos ou a entreajuda entre as presas politicas, e ignora a ternura da relação que entre elas nutria o seu parco quotidiano.

A toponímia do Barreiro, na Freguesia de Santo André, Unhos no Concelho de Loures e Vale de Vargo no concelho de Serpa, consagra justamente o seu nome como mulher antifascista que lutou por Abril. Cedo partiu mas legou às mulheres e à democracia um rasto de perseverança, ternura e dignidade.

 

[1] Maria Luisa Costa Dias, Crianças Emergem da Sombra. Contos da Clandestinidade, Edições Avante, Lisboa, 1982, p. 61

[2] Cristina Nogueira, Vidas na Clandestinidade, Edições Avante, Lisboa, 2011, p.174

[3] A Voz das camaradas das Casas do Partido, nº 49, Dezembro de 1969, p.1.

[4] Noticias da Amadora, 3 de Fevereiro de 1975

[5] Discurso fúnebre de Álvaro Cunhal em Nuno Gomes dos Santos, Pedro e Luísa. Morrer Antes do Fim, Edições Déagá, Lisboa, 1975.

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