Maria Isabel Barreno de Faria Martins nasceu em Lisboa, a 10 de julho de 1939. Faleceu a 3 de setembro de 2016.
Escritora

A libertação dum peso que nos esmagava, essa é a primeira sensação que recordo do 25 de Abril (…) É indescritível a alegria desses dias, dessas semanas, desses meses.

Maria Isabel Barreno de Faria Martins nasceu em Lisboa, a 10 de julho de 1939, de uma família da classe média. Seu pai, Joaquim Hipólito de Faria Martins, era comandante da Marinha Mercante. Sua mãe, Isabel da Conceição Barreno de Faria Martins, era doméstica, como a maioria das mulheres da classe média do seu tempo.

Entrou para a Faculdade de Letras no ano lectivo de 1956/57, em Ciências Históricas e Filosóficas. Licenciou-se em 1962 (com as greves de 1961 pelo meio).

Nasceu e viveu no Areeiro, bairro que na altura era sossegado, quase rural, onde se vivia tranquilamente com o ritmo de aldeia[1]. Frequentou um colégio de freiras. Era um tempo de fortes estereótipos sociais a marcar a mulher e o homem, um tempo de discurso castrador.

Foi uma Mulher sempre inquieta, em busca permanente de sentido para as coisas. Depois de sair do universo resguardado do colégio de freiras e entrar na Faculdade de Letras, “a sensação que trazia comigo há muito tempo de que era, por ser mulher, uma pessoa de segunda classe … e isso empurrou-me para as actividades associativas da época, vividas sobretudo na associação de estudantes do Técnico… foi aí que começou verdadeiramente a formar-se a minha consciencialização política, social e cívica. Passei a entender o que significava viver numa ditadura e a escrita surgiu-me como o melhor modo de denunciar o estado das coisas”[2].

Cedo manifestou o gosto pela leitura e a escrita. Fez o seu primeiro poema aos 11 anos. Depois da licenciatura trabalhou no Instituto Nacional de Investigação Industrial, foi jornalista e Conselheira Cultural para os Assuntos do Ensino na Embaixada portuguesa em Paris.

Como escritora, publicou um total de 24 obras, entre as quais dez romances e quatro livros de contos. Participou também em diversas antologias de contos. Pela sua obra, em 1991, recebeu os prémios Camilo Castelo Branco e do Pen Club para o livro de contos Os Sensos Incomuns, e o prémio Fernando Namora para o romance Crónica do tempo. A Sextante Editora publicou em 2009 o seu romance mais recente, Vozes do vento. De 1990 a 1993, foi chefe de redação da revista Marie Claire.

Maria Isabel Barreno é ficcionista, de influência filosófica e artista plástica. Lembramo-nos dos seus poemas bordados em exposições nos anos 80. As paredes de sua casa estão repletas de assemblages, cortes e recortes de papel, tessituras, letras bordadas, desenhos escritos e outros objectos literários não identificados. Durante algum tempo organizou diversas Exposições de “poemas bordados”, “desenhos escritos”, entre as quais “Livros, desenhos e tapeçarias”, no C.A.M. da Fundação Gulbenkian, em 1986.

A 8 de Março de 2004, foi-lhe atribuída a condecoração Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique.

Depois de uma conversa longa em sua casa na Costa da Caparica onde prontamente nos recebeu, comprometeu-se a fazer a sua biografia escrita sob a forma de tópicos, onde naturalmente se encontra o seu próprio olhar, sobre si e o seu tempo, também sobre nós, sobre o MDM que ela mal conhecera. O lugar e o tempo condicionam a nossa vida e a opacidade que nos rodeia adensa a nossa invisibilidade, mas as coisas comuns ligam-nos inexoravelmente. Vejamos a estória que Isabel Barreno nos conta, e nós dá a dimensão simbólica do que é ser Mulher de Abril, uma mulher que vive e pensa e continua a viver e a pensar que as coisas não estão bem e que é preciso mudar o mundo.

“O ensino nunca me interessou, por isso procurei emprego noutras áreas. Em Janeiro de 1962 entrei para o Instituto Nacional de Investigação Industrial (Serviço de Produtividade, departamento de Relações Humanas na Empresa). Como referi, foi nesse mesmo ano que defendi a tese de licenciatura, em Outubro. Assim começou a minha vida adulta.

“Trabalhei 13 anos no INII. Entrei como técnica de 3ª e fui subindo – técnica de 2ª, de 1ª, investigadora.  As desigualdades de género que senti não se relacionaram com vencimentos ou promoções, mas sim com a dificuldade de conciliar filhos com trabalho – nesse tempo, tudo o que tínhamos eram 15 dias de férias de parto, assim designadas.

“Desde criança que me senti cidadã de segunda: eram muitas as coisas que uma menina não podia fazer e não podia ser. Eu via as mulheres trabalhando em todo o lado – empregadas domésticas, leiteiras, peixeiras, vendedeiras dos mais variados produtos nas ruas e nos mercados – mas quem mandava e quem fazia as coisas importantes eram os homens. Tive algumas influências familiares positivas: a minha mãe acreditava que homens e mulheres eram iguais, ou deveriam sê-lo, em termos de direitos e dignidade, e o meu pai sempre insistiu para que estudássemos (a minha irmã e eu) para que pudéssemos trabalhar e não ficássemos economicamente dependentes dum marido.

“A minha politização, em termos dos efeitos nefastos da ditadura fascista, foi feita na faculdade, através das lutas estudantis, E no INII tive oportunidade de fazer vários estudos (Adaptação do Trabalhador de origem Rural ao Meio Industrial e Urbano, Os Trabalhadores e o progresso Técnico) e de conhecer o mundo do trabalho. Por exemplo: as indústrias electrónicas vinham então implantar-se em Portugal, procurando mão-de-obra barata e contratando sobretudo mulheres, pela sua específica habilidade manual; mas essa sua capacidade para gestos finos e precisos não era valorizada, pelo contrário, as funções das mulheres, e concomitantemente os salários, eram sempre consideradas inferiores às dos homens. Ou ainda a questão das estatísticas: as camponesas eram classificadas como domésticas rurais; em todas as áreas de actividade as mulheres eram empurradas para a economia paralela, informal, empurradas para a invisibilidade. E, ao mesmo tempo, o sofrimento desumano: a empregada da limpeza do serviço onde eu trabalhava morreu quando fez o seu vigésimo quarto aborto caseiro. Com o passar do tempo apercebi-me de que os estudos que fazíamos no INII, por inovadores que fossem, para pouco ou nada serviam.

“Procurar as causas profundas, no passado, na evolução das sociedades humanas; analisar tudo o que ficou fora da concepção do mundo construída pelas sociedades patriarcais. Foi esta a linha que segui em A Morte da Mãe, livro começado antes das Novas Cartas Portuguesas, a linha que segui e que me alimentou na escrita das N.C.P. Qual foi a importância maior da publicação das N.C.P., do sequente processo em tribunal e da visibilidade internacional trazida por esse processo? Para mim, a mais importante consequência surgiu no texto da nova Constituição portuguesa, redigida a seguir ao 25 de Abril. Aí se instituía a igualdade de direitos de todos os cidadãos, sem distinção de raça, sexo ou religião. Não esqueçamos: nesses tempos, a ideologia de direita considerava a mulher como basicamente, ou exclusivamente, vocacionada para as tarefas domésticas e familiares; a ideologia de esquerda, considerava a opressão das mulheres como mero efeito secundário de problemas mais vastos e importantes, nomeadamente a luta de classes.

“Ou seja, no mapa político da realidade de então, a opressão das mulheres ou não existia ou estava relegada para a penumbra das coisas secundárias. Não fora todo o ruído internacional do processo das Três Marias e seria altamente improvável que alguém se tivesse lembrado de expressamente incluir a igualdade de direitos das mulheres na Constituição. As mulheres de muitos outros países ditos democráticos – entre os quais o E.U.A – tiveram ainda que lutar vários anos para conseguirem que a sua igualdade de direitos fosse consignada no respectivo texto constitucional.

A libertação dum peso que nos esmagava, essa é a primeira sensação que recordo do 25 de Abril. Fiquei livre dum longo e penoso processo judicial, que me aparece apenas como um pequeno detalhe na explosão de alegria colectiva. É indescritível a alegria desses dias, dessas semanas, desses meses. Sentíamos que havia, finalmente, um nós enunciável para além do futebol, do fado e do bacalhau. Corríamos dum lado para o outro, incansáveis, nas ruas coalhadas de gente e de carros. Engarrafamentos monstros, soldados arvorados em polícias sinaleiros, todos sorríamos, acenávamos, abraçávamo-nos, fazíamos “VV” de vitória.

“E fundámos o M.L.M., movimento a que pertenci enquanto durou. Nunca me filiei num partido, porque aí via a continuação do que constatara desde o tempo das lutas estudantis: os homens eram os protagonistas, ou vistos como tal, as mulheres eram as “companheiras”, as “ajudantes”, ou vistas como tal.

Muitas foram as coisas conquistadas com a revolução de 25 de Abril, todas importantes, vitais. Mas a verdadeira universalidade dessas conquistas – isto é, que estas pertençam também à metade da sociedade que é constituída pelas mulheres – tem a sua raiz na igualdade constitucional; e ainda está longe de dar todos os seus frutos[3]. As mulheres continuam com a sua dupla tarefa, sobrecarregadas, o que dificulta, ou mesmo impede, a sua intervenção enquanto cidadãs e a sua participação na vida política.

Entretanto, mudou o mundo. Entre os dois pólos opostos – E.U.A. e U.R.S.S. – a Europa tinha espaço livre para viver as conquistas democráticas e humanistas que penosamente fora adquirindo. Actualmente, o capitalismo triunfante está tratando de impor um regresso ao capitalismo selvagem.

“Hoje em dia, num mundo em crise económica e ecológica generalizada, é urgente prosseguir na análise de tudo o que foi subalternizado pela ideologia patriarcal: tudo o que não tem valor económico, dos filhos e do trabalho doméstico às chamadas riquezas naturais e às relações afectivas. Uma ideologia onde a economia é concebida como um universo fechado, ficcionalmente auto-suficiente e com crescimento infinito, mas alimentando-se parasitariamente de todas essas outras coisas consideradas sem valor.”

Para além deste veemente testemunho pessoal, procurámos entrelaçar a sua narrativa com textos de algumas das suas biógrafas, que julgámos pertinentes. Procurámos naturalmente evitar repetições mas há intersecções e intertextualidades que se justificam. Maria de Fátima Marinho, Catedrática da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, tem a particularidade de analisar a obra de Isabel Barreno, à luz de uma expressão singular, o feminino em construção, como sinónimo da constante presença das relações homem-mulher nos seus diferentes cenários na obra e textos da escritora. “Os universos criados transportam-nos para as relações comuns entre marido e mulher correspondentes a códigos tacitamente aceites, que começam a ser postos em causa por mulheres conscientes do papel redutor e reprimido que a sociedade lhes reservou, começando progressivamente a questionar-se sobre a imutabilidade de uma sociedade que não consegue assimilar um contra-poder que fará sombra ao discurso masculino, estabelecido por séculos de incontestado domínio”[4].

Já em Os Outros Legítimos Superiores (1970), confirmando a sua vocação como romancista[5],  abordava privilegiadamente sentimentos e pressentimentos de personagens femininas invulgarmente lúcidas e conscientes dos laços invisíveis que as unem aos outros. Em conversa recente com Maria João Seixas, Maria Isabel Barreno diria que essa ficção era de facto uma especulação filosófica sobre o papel que era reservado às mulheres e que nem sempre era compreendido sendo mesmo motivo de ataque pessoal: “Comecei a ser atacada como feminista, sem se darem sequer ao trabalho de conhecer o que era a verdadeira natureza do feminismo… ficavam-se pela ideia genérica de um bando de loucas, que queimavam soutiens na praça pública e queriam impor a ditadura das mulheres” [6]. Sempre questionadora, teve a consciência de que todo o pensamento humano sagrava o homem como sujeito único e universal, cabendo à mulher a subalternidade de mero apêndice. Porque é que os plurais se fazem sempre no masculino é uma das suas interrogações perenes que a levaram a escrever O Falso Neutro. Recusa a ideia de uma literatura feminina. Como escritoras, escrevemos sobre a Humanidade, mas reconhece que, trazer à superfície essa metade do mundo que são as mulheres é valorar a Humanidade inteira.

Com Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa participa na aventura de Novas Cartas Portuguesas, uma obra cuja proibição, apreensão e consequentes processos em tribunal a projectaram além-fronteiras. Maria Isabel Barreno ficará indissociavelmente ligada à denúncia da condição de inferioridade da mulher na sociedade portuguesa. As três autoras viram a despromoção literária da sua obra ao mesmo tempo que eram remetidas a tribunal por autoria de um livro pornográfico com a acusação de um delito comum de ofensas à moral pública.

Julgadas criminalmente em Fevereiro de 1974 as três Marias,  só foram absolvidas com o 25 de Abril. O processo foi obviamente desmesurado. Bastava terem apreendido o livro e/ou censurado como faziam a tantos outros. As três Marias empenharam-se e divertiram-se na construção daquele texto híbrido, inovador, de cartas, poemas e prosas que veio a ser logo considerado uma obra prima da literatura portuguesa[7], um livro de alto valor literário, só acessível a espíritos de alto nível cultural[8], um verdadeiro libelo contra a situação de inferioridade social e humana em que tradicionalmente a mulher vem vivendo[9] e também um protesto simpático e veemente contra a situação subalterna das mulheres portuguesas, tentando destruir … a imagem da mulher-objeto não só das humilhações sociais marialvistas mas também das parvoíces líricas que servem admiravelmente o machismo reinante[10].

Novas Cartas Portuguesas é claramente um texto desafiador da sociedade do nosso tempo para a questão das mulheres e para a análise da questão social e política do Portugal antes do 25 de Abril. A notável publicação organizada e anotada por Ana Luisa Amaral deu-lhe grande visibilidade e credibilidade científica revelando-se um útil documento para a construção de novos mapas de entendimento e de uma geografia social e humana.[11]

No depoimento que prestou em julgamento, como testemunha, em 1 de Março de 1974, Maria Lamas chamava a atenção para a necessidade deste livro ser estudado e analisado. “ Com projecção muito para além das nossas fronteiras tem uma repercussão mundial no contexto da luta pela dignificação da mulher (…) São páginas satíricas, páginas líricas, páginas de um humorismo amargo e de uma simplicidade por vezes comovente. É por assim dizer a soma de todos os aspectos da vida amorosa da mulher”[12].

A 7 de Maio de 1974,  a sentença foi lida. Uns dias depois do 25 de Abril. Já as grilhetas se soltavam. Ao contrário do que sentenciavam os esbirros do fascismo, o juiz Acácio Lopes Cardoso, concluía pela absolvição das autoras e do seu editor e declarava, “o livro não é pornográfico, nem imoral. Pelo contrário: é obra de arte, de elevado nível, na sequência de outros que as autoras já produziram”.

Com o 25 de Abril deu-se a inversão dos valores. Vingou a razoabilidade, vingou a decência e a liberdade. Maria Isabel Barreno já o disse de viva voz. Em conversa que com ela tivemos naquele dia 3 de Abril de 2014, em sua casa, referia “Muitas foram as coisas conquistadas com a Revolução de 25 de Abril, todas importantes, vitais (…) a Constituição inovadora na altura – a lei mudou toda – deixou de ser só a pensar na família, a liberdade de expressão trouxe mais vozes de mulheres, mais escritoras, mais vozes femininas para a conversa que era então dominantemente masculina”.

[1] Entrevista a Maria João Seixas, publicada em República das Mulheres, Bertrand Editora, 2010 (p.171-179).

[2] Ibidem, p. 176

[3] Sublinhado nosso

[4] Maria de Fátima Marinho, Maria Isabel Barreno – O feminino em construção,   SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 10, n. 19, p. 203-214, 2º sem. 2006. Maria de Fátima Marinho é docente da Faculdade e Letras da UP desde 1976, Professora Catedrática desde 2001 e Diretora da Faculdade de 2010 a 2014. Atualmente é Vice-Reitora da UP

[5] Maria Isabel Barreno. http://www.infopedia.pt/$maria-isabel-barreno>.[Consult. 2014-03-21].

[6] Isabel Barreno em conversa com Maria João Seixas, em Maria João Seixas, República das Mulheres, Bertrand Editora, Lisboa 2010, P. 177

[7] Urbano Tavares Rodrigues em O Processo das 3 Marias de Duarte Vidal, editorial Futura, Lisboa, 1974

[8] Natália Correia, obra citada, p.38

[9] Augusto Abelaira, obra citada, p.42

[10] Carta de José Gomes Ferreira, então Presidente da Sociedade Portuguesa de Autores, dirigida a Maria Isabel Barreno em 25 de Abril de 1973, publicada por Duarte Vidal, o advogado de defesa de Isabel Barreno no Processo das 3 Marias.

[11] Ana Luisa Amaral, organização e edição anotada de Novas Cartas Portuguesas, D.Quixote, 2010.

[12] Maria Lamas, no Julgamento de 1 de Março de 1974, como testemunha na defesa de Maria Isabel Barreno.

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