Maria Helena Vieira Silva nasceu em Lisboa na Rua das Chagas a 13 de Junho de 1908 e morreu em Paris a 6 de Março de 1992.
Pintora

Teço a minha teia de aranha ao passo e à medida que vivo

Maria Helena Vieira da Silva nasceu em Lisboa, na Rua das Chagas, a 13 de Junho de 1908 e morreu em Paris a 6 de Março de 1992, filha de Marcos Vieira da Silva e Maria do Céu Silva Graça. O pai, diplomata, morreu tinha Maria Helena três anos, pelo que foi educada apenas pela mãe. Aos onze anos ingressou na Academia de Belas-Artes, em Lisboa, onde estudou desenho e pintura. Motivada também pela escultura, estudou Anatomia, na Faculdade de Medicina de Lisboa.

Com 19 anos, foi residir para Paris, tendo estudado com Fernand Léger e trabalhado com Henri de Waroquier e Charles Dufresne. Nesta cidade conheceu o pintor húngaro Arpad Szenes, com quem casou em 1930, numa forte relação e veneração, uma paixão que só foi interrompida com a morte dele em 1985.

Devido ao facto de seu marido ser judeu e de ela ter perdido a nacionalidade portuguesa ao casar, dada a complexa situação política na Hungria, decidiram oficialmente passar ambos à situação de apátridas residentes em França. Durante a Segunda Guerra Mundial o casal decidiu ir para o Brasil para fugir às perseguições nazis. Aí, viveram de 1940 a 1947, onde contactaram com importantes artistas locais, como Carlos Scliar e Djanira. Ambos exerceram grande influência na arte brasileira, especialmente entre os modernistas. O poeta brasileiro Murilo Mendes, grande expoente da cultura brasileira da época, exprime desta forma essa sintonia com a obra da pintora, “O drama do nosso tempo, tempo de massacre e injustiça social está fixado na obra de Maria Helena, sem nenhum aspeto de sensacionalismo, com a tristeza e a gravidade exigidas por esse cruel ballet de linhas, côres e volumes”[1].

Maria Helena expôs pela primeira vez em França em 1933, no Salon de Paris, e em Portugal em 1935.

A partir de 1948, o Estado francês começa a adquirir as suas pinturas e, em 1956, tanto ela como o marido obtêm a nacionalidade francesa, depois de, em 1952, Maria Helena ter requerido às autoridades portuguesas a reaquisição da nacionalidade portuguesa, que lhe foi recusada. Em 1960, o Governo francês atribui-lhe uma primeira condecoração, concedendo-lhe o grau de Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras. Em 1966, é a primeira mulher a receber o Grand Prix National des Arts e, em 1979, torna-se Cavaleiro da Legião de Honra Francesa, condecoração renovada por Miterrand em 1991. O Estado francês comprou-lhe diversos quadros, nomeadamente La Bibliothèque e a famosíssima La Partie d’Écheques[2].

Vieira da Silva é uma das mais famosas e cotadas pintoras portuguesas. Dedicou a sua vida à pintura. Recebeu várias homenagens e prémios, fez centenas de exposições individuais e colectivas e está representada em museus de grande renome internacional.

Deixou também tapeçarias, vitrais, gravuras, ilustrações de livros infantis e cenários de teatro. Bastante esquecida e pouco reconhecida durante o regime do Estado Novo que a impediu mesmo de expor em eventos nacionais, só com a implantação da democracia em Portugal, em 1974, é mais divulgada a sua obra.

Em 1970, a Academia Nacional de Belas Artes nomeou-a seu membro efetivo, dez anos depois de lhe ter sido atribuído em França o grau de Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras. O Governo português atribui-lhe, em 1977, a mais alta condecoração, não militar, a Grã-Cruz da Ordem de Sant’Iago da Espada, que lhe é entregue pelo Embaixador de Portugal em Paris e, no dia em que perfez 80 anos, recebeu a Grã Cruz da Liberdade. Foi sem dúvida o merecido, ainda que atrasado, tributo à insigne pintora portuguesa, mulher de princípios e causas de mérito universal.

O professor José Augusto França escrevera, em 1958, uma monografia consagrada à vida e obra da pintora. Também a escritora Agustina Bessa-Luís que a conhecera em 1962, em casa de Sophia de Melo Breyner, escreveu sobre ela e Arpad, o livro ficcionado Longos Dias Têm Cem anos (1982). Agustina lembra-a como “uma mulher sócia da emoção e para quem as paixões significaram talvez uma cumplicidade com uma outra realidade que não está presente”. Maria João Martins reconhece-a, para além da sua grandeza pessoal e artística, como uma cidadã do mundo. [3]

Em Portugal, a Manufactura de Tapeçarias de Portalegre inicia em 1968 a execução de um importante conjunto de tapeçarias a partir de obras de Vieira da Silva. Com os seus trabalhos e de outros artistas portugueses contemporâneos, assiste-se a um incontornável processo de autonomia da tapeçaria artística portuguesa.

Sou uma mulher da cidade disse um dia Vieira da Silva a Isabel da Nóbrega, como que a justificar as inúmeras cenas urbanísticas que povoam o seu imaginário e o seu fascínio pelas grandes aglomerações urbanas. Gisela Rosenthal refere-se à panorâmica desse teia de cidades, estações, pontes, inundados por pontos, linhas, tracinhos ou pintas cromáticas, verdadeiros lugares de passagem e de encontro que Vieira da Silva transforma em lugares simbólicos da existência humana[4]. Não certamente por acaso, é convidada para conceber a decoração da nova estação Cidade Universitária do Metropolitano de Lisboa, onde desde 1989, figura um painel de sua autoria, transposto para azulejos por Manuel Cargaleiro. Também a estação do Rato, aberta ao público em 1997, ostenta um painel seu com a temática da cidade, Ville en Extension. No mesmo átrio, no lado oposto, está colocado um painel de seu marido, Banquet, como que eternizando aquele amor de cinquenta e seis anos de união perfeita. Espelhada no Metropolitano de Lisboa ficou pois a sua paixão pelo azulejo e pela luz única de Lisboa, cuja memória sempre marcou a sua pintura.

O ano de 1974 seria marcante para a pintora devido à Revolução dos Cravos cujos acontecimentos terá seguido atentamente, com emoção e alegria. A Revolução marcava o fim de um regime autocrático, o fim de uma guerra colonial sem sentido e um momento de mudança e de abertura fundamentais para o País, não só politicamente, mas também culturalmente[5]. Residindo em França mas desejando participar de alguma maneira no clima de mudança que vivia o País, em 1975 Vieira da Silva exporá um conjunto de gravuras na Biblioteca-Museu Municipal de Vila Franca de Xira e, correspondendo ao convite de Sophia de Mello Breyner, executa dois cartazes memoráveis. Um, com o título A Poesia está na Rua e outro, 25 de Abril de 1974, ficarão para sempre como lugares simbólicos da Revolução de Abril, que guardamos na memória como parte do arquivo visual do 25 de Abril. O cartaz A Poesia está na Rua é uma referência histórica da sua ligação à liberdade e à democracia e revela bem como ela sentiu não só o momento mas tudo o que a cidade viveu nesse período.

Como testemunham muitos daqueles com quem conviveu, a pintora terá mantido sempre uma “discreta mas profunda ligação com o país natal”[6] e daí a representação mesmo à distância das ruas estreitas e da igreja que conhecera junto ao Largo do Carmo, onde pelas notícias que de Portugal lhe chegavam, tinham ocorrido os acontecimentos mais marcantes do dia 25 de Abril.

Numa conversa do casal com a escritora Anne Philipe,[7] que decorreu ao longo de semanas, entrecortada e pautada por silêncios e algumas questões sem resposta, mas sempre espontânea e intensa, Vieira da Silva recorda paisagens de pintores célebres, fala das flores de cores diversas e belas do seu jardim, e cheia de entusiasmo fala do seu quotidiano preenchido pela pintura. Com a mesma frescura que toca esse quotidiano singular fala do que pensa do feminismo. Recortamos algumas das suas palavras que importa contextualizar no tempo. “Lembro-me de que quando era criança, se falava das sufragistas. Eram um pouco ridículas, mas muito úteis. A mulher burguesa achava-se numa situação impossível. Era educada no luxo, mas depois só lhe restava casar-se.

Era-lhe interdito ganhar a sua vida, e assim via-se impelida ao pior: a prostituição ou a miséria. Os pais de família achavam isso normal, natural. Vi mulheres casadas com homens riquíssimos, sem um centavo de seu, impossibilitadas de tomar qualquer iniciativa. Estavam fechadas numa gaiola de oiro. As mulheres pobres viviam esmagadas pela miséria, mas às vezes tinham mais liberdade”[8] . O tema do feminismo e da condição feminina não lhe era, portanto, avesso, fazia parte das suas inquietações. Não se conhecem representações femininas na sua pintura, mas vê-se neste mesmo texto que tem um olhar perspicaz sobre a forma como as mulheres aparecem na pena de muitos escritores. “Elas ou não estão ou aparecem como sujeitos menores”. As heroínas de Racine “não são mulheres, são ideias”. Em Racine, a igualdade é uma igualdade de ideias, elas são “maiores que o natural e quase sem vida e sem movimento”. Já em Shakespeare, comenta Vieira da Silva “as heroínas são de facto mulheres”.

Pode dizer-se que Vieira da Silva foi uma mulher de Causas. Sempre defendeu a dignificação das mulheres. Sempre pugnou pela Paz contra a Guerra. Em 1979, aceitou ser membro do Comité de Honra do Movimento contra o Racismo e pela Amizade entre os Povos, a convite de Pierre Paraf, Presidente do Movimento.

Maria Helena Vieira da Silva morreu em Paris, sendo enterrada numa cerimónia com simplicidade, no jardim da sua casa de campo, em Yèvre-le-Châtel, ao lado de Arpad e de sua mãe, sem discursos nem flores, como foi seu desejo.

Em Lisboa, no Jardim das Amoreiras, o Museu da Fundação Arpad Szenes Vieira da Silva, inaugurado em Novembro de 1994, acolhe grande parte das suas obras que podem ser visitadas e revisitadas em exposições e itinerários próprios que, não só fazem o prolongamento deste amor eterno dos dois grandes pintores, como entrelaçam as suas experiências pictóricas e plásticas num enorme caleidoscópio de linhas, cores e luzes que transbordam de sentimentos.

A sua directora, Marina Bairrão Ruivo, tem nas mãos um património fabuloso que trabalha para ver crescer e prolongar no tempo. No Museu são permanentes novas edições expositivas, leituras diversas, que se abrem a ângulos de visão e olhares múltiplos, recuperando as emoções de quem com a obra plástica de Vieira da Silva ou com a sua experiência de vida partilhou alguma coisa.

Sentimos a sua afável disponibilidade nesta luminosa casa, antiga fábrica de tecidos de seda, um edifício do Séc XVIII, trazendo-nos um conjunto de livros, cartazes e réplicas. Sentimos a ligação íntima entre a vida e a obra de Helena Vieira da Silva e seu marido. Perscrutamos o aroma cálido do amor de duas grandes figuras da nossa história contemporânea, não apenas artística mas também numa comprometida intervenção social e política. Percorrendo o Museu, colhemos a beleza da obra plástica e poética, labiríntica, esse ballet de linhas, cores e volumes[9] de Maria Helena Vieira da Silva, das suas corajosas e determinadas opções, de uma vida pessoal e artística que foi tecendo, lado a lado com o seu amor de sempre, cujos ecos sociais se espalharam para além do seu próprio mundo tal como expressou num poema escrito por sua mão deixado em testamento à humanidade[10].

TESTAMENTO

Vieira da Silva

Eu lego aos meus amigos
Um azul cerúleo para voar alto
Um azul cobalto para a felicidade.
Um azul ultramarino para estimular o espírito.
Um vermelhão para o sangue circular alegremente.
Um verde musgo para apaziguar os nervos.
Um amarelo ouro: riqueza.
Um violeta cobalto para o sonho.
Um garança para deixar ouvir o violoncelo.
Um amarelo barife: ficção científica e brilho; resplendor.
Um ocre amarelo para aceitar a terra.
Um verde veronese para a memória da primavera.
Um anil para poder afinar o espírito com a tempestade.
Um laranja para exercitar a visão de um limoeiro ao longe.
Um amarelo limão para o encanto.
Um branco puro: pureza.
Terra de siena natural: a transmutação do ouro.
Um preto sumptuoso para ver Ticiano.
Um terra de sombra natural para aceitar melhor a melancolia negra.
Um terra de siena queimada para o sentimento de duração.

 

[1] Murilo Mendes, Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro, Julho de 1942.

[2] A Biblioteca é uma temática recorrente na obra de MHVS e tal como A Partida de Xadrez, essas telas figuram no Museu Nacional de Arte Moderna do Centro Georges Pompidou, em Paris.

[3] Biografia de Vieira da Silva in Maria João Martins, Mulheres Portuguesas, Divas, Santas e Demónios, Vol.I, Veja/Multilar, 1994, p.36-37.

[4] Gisela Rosenthal, Vieira da Silva, Taschen/Público, 2004, pp.71-72

[5] Joana Baião, Vieira da Silva, Lisboa, Quidnovi, 2010, p. 70-71

[6] Au fil du temps. Percurso fotobiográfico de Maria Helena Vieira da Silva, Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva, 2008.

[7] Anne Philipe, O fulgor da luz, Lisboa, Edições Rolim, 1995. O livro foi editado em França em 1978 e traduzido para português por Luiza Neto Jorge.

[8] Ibidem p. 44

[9] Murilo Mendes, Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro, Julho de 1942.

[10] Joana Baião, Vieira da Silva, Quidnovi, 2010, 2010, p. 86-87.

[11] Joana Baião, ibidem, p.87

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