Integrada no Coro da Academia de Amadores de Música, Celeste Amorim foi uma diva da música de protesto e glória das canções de Abril.
Maria Celeste Robalo de Amorim nasceu em 13 de Fevereiro de 1938 na freguesia de S. Sebastião da Pedreira, concelho de Lisboa, terra onde viveu e estudou e faleceu em 10 de Março de 2009. Era filha de António de Amorim Pereira e de Maria do Resgate Robalo de Amorim. O pai era professor de música e foi director de bandas filarmónicas da GNR e de bombeiros de Torres Vedras e de Vila Franca de Xira. A mãe era professora de rendas e bordados numa escola industrial.
A sua mãe faleceu quando a Celeste tinha 4 anos. Ainda muito jovem, acompanhando o pai, foi viver para Torres Vedras iniciando-se numa intensa actividade cultural, nomeadamente na direcção do Cine Clube local até este ser encerrado por ordem do Governador Civil debaixo da batuta do Estado Novo que considerava as actividades culturais como actividades subversivas.
Celeste Amorim muito cedo se apercebeu pois da importância que o acesso à cultura e ao conhecimento tem na libertação do ser humano. Em 1961 integrou o Coro Lopes Graça onde se manteve até ao fim da sua vida. Com Michel Giacometi, o etnólogo que percorria o País na recolha da música tradicional portuguesa, o trabalho da Celeste teve várias vertentes, a mais conhecida das quais foi a locução da série televisiva O Povo que Canta.
Com uma intensa actividade antifascista, nunca foi presa mas protagonizou uma curiosa e anedótica estória que nos faz rir hoje. Uma história ante (s) passada contada por Sérgio Ribeiro, seu compadre e amigo. “Um dado dia de 1962, em Torres Vedras foram presos vários antifascistas. A casa de Celeste estava na mira, vários amigos tinham sido presos. Os pides bateram à porta e a dona da casa abriu com aparente descontracção. Eles identificaram-se. Era, disseram, uma visita de rotina, coisa sem importância, uma visita rápida e umas perguntas breves… A Celeste Amorim, muito jovem, com aquele seu sorriso, embora aquele fosse muito forçado, terá respondido que sim, senhor, façam favor de entrar. E quando eles entraram… ela saiu! E saiu com a chave na mão, e fechou os pides dentro de casa! E fugiu!”
Todos os que com ela conviveram reconheciam as suas qualidades humanas. Sempre sublinharam a sã camaradagem, a generosidade e a alegria que, com toda a singeleza, Celeste Amorim espalhava entre aqueles que com ela privavam. Sempre enalteceram os traços de carácter e os valores que perfilhava, a sua vida de militância, o seu talento, a sua voz que acrescentou beleza e harmonia ao magnífico Coro Lopes Graça. O seu sorriso belo, porque terno, solidário e fraterno ficou para sempre na memória e no coração de quem com ela conviveu e dela ficou o exemplo e o estímulo para continuar a lutar, com ética e firmeza, pelos valores da justiça social, isto é, pelos valores do 25 de Abril. Mesmo quando perante os adversários políticos sabia respeitar as diferenças de opinião de forma elevada, o que lhe granjeou prestígio e consideração em vastos sectores da sociedade.
Por amor, Celeste Amorim foi viver para Almada, onde casou com o advogado José Noronha e logo se inseriu no trabalho local. Exerceu vários mandatos na Freguesia de Cacilhas eleita pelas listas da CDU. Foi membro activo da Associação de Amizade Portugal-Cuba. Foi distinguida pela Câmara Municipal de Almada com a Medalha de Prata de mérito cultural, ela que considerava a cultura como um dos mais importantes instrumentos de intervenção na sociedade.
Celeste Amorim viu nascer Abril e com os seus valores se identificou. Com ela partilhámos momentos de extraordinária beleza em homenagem a muitas mulheres celebradas pelo MDM ao longo destes 40 anos. Foi pela música que com ela estabelecemos laços de grande fraternidade e ternura no MDM. Com a sua voz única contámos sempre. Só, ou integrada no Coro da Academia de Amadores de Música, era uma diva da música de protesto e glória das canções de Abril, enraizadas no povo e nas suas mais belas tradições.
Celeste Amorim tinha uma voz de soprano belíssima e luminosa. Uma “voz de eleição”. É assim que Mário Vieira de Carvalho sintetiza essa relação de grande cumplicidade artística e política que Celeste mantinha com o compositor Fernando Lopes-Graça.
Reproduzimos parte desse elogio que o musicólogo, Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, teceu no CD (re)editado em 2012 pela Associação Lopes Graça, que não deixa dúvidas quanto ao mérito artístico desta mulher e ao destacado papel que desempenhou no trabalho de Lopes-Graça.
“Celeste Amorim, com a sua voz de soprano belíssima e luminosa, ocupava normalmente o lugar da primeira fila, bem ao centro, no Coro da Academia de Amadores de Música.
O lugar que Fernando Lopes-Graça, compositor e director do coro, lhe destinava não resultava apenas da disposição dos diferentes naipes. Pelo contrário: as próprias canções regionais que Lopes-Graça ia recriando, nos seus arranjos, é que exigiam cada vez mais aquela voz de soprano numa posição central.
Lopes-Graça compunha arranjos de canções tradicionais (mais de duas centenas) para o seu coro de amadores, não só para fazer música com eles, redescobrir com eles um património musical tradicional e as idiossincrasias locais que nele se manifestavam, mas também dá-lo a conhecer nas suas peregrinações pelo País em contextos de comunicação alternativos aos meios de comunicação de massas e às salas de concertos.
As canções corais de Lopes-Graça são hoje “clássicos” incontornáveis tanto para coros amadores como profissionais, suscitam cada vez mais o interesse de grupos corais estrangeiros (apesar da barreira da língua), universalizam-se, circulam transversalmente entre os diversos sistemas e meios de comunicação.
Esse legado cultural, invulgarmente rico, não teria sido possível sem o trabalho quotidiano do compositor, ao longo de quarenta anos, com o Coro da Academia de Amadores de Música – um verdadeiro laboratório, que lhe permitiu exercitar a experimentação técnica e expressiva muito para além do que se contém no conceito convencional de “harmonização” de melodias populares.
Nesse sentido, as canções regionais de Lopes-Graça são, em larga medida, obra colectiva. Não se trata de escrever em abstracto para coro, mas sim de pensar a música com as pessoas concretas que o constituem, responder às solicitações e aos desafios que estas colocam ao compositor, comunicar com elas ou comungar com elas visões do mundo e da vida, interrogações, ideias, experiências do real, da terra e das suas gentes.
As notas lançadas por Lopes-Graça à pauta estão, neste sentido, carregadas de vida, são notas “personalizadas”, inseparáveis da relação entre a pessoa do compositor e a pessoa do intérprete. Muitas dessas notas musicais foram escritas para a Celeste Amorim e não teriam surgido sem a Celeste Amorim.
Há elementos de escrita musical – pensamento harmónico, variação motívico-temática, refinamento polifónico, ornamentação – que o registo agudo, invulgarmente cristalino, da voz de Celeste Amorim sugere a Lopes-Graça num arranjo de canção regional, e se transforma depois numa aquisição de linguagem que reaparece noutro contexto – por exemplo, na parte de soprano do Requiem pelas vítimas do fascismo em Portugal. São momentos em que a expressão é extremada por um gesto sobressaliente, disruptivo, da voz feminina, na sua tessitura mais elevada.
Celeste Amorim, como todos os membros do coro, cultivava a emissão natural, não empostada, aquilo a que Lopes-Graça chamava a “cor etnográfica”, na qual o treino vocal e os seus artifícios não se impõem à voz, antes a deixam revelar-se na pureza fonética do português falado. A voz devia servir a língua portuguesa, em vez de a violentar, reproduzi-la com fidelidade, deixar que esta se manifestasse foneticamente também nas notas musicais. Eis o que Lopes-Graça procurava recuperar igualmente no seu repertório de canções de concerto, quando trabalhava com cantores profissionais como Arminda Correia, Dulce Cabrita, Fernando Serafim ou José de Oliveira Lopes.
Não sendo Celeste Amorim uma cantora profissional, tinha, porém, todas as condições para se ter profissionalizado. Bem o comprovam os numerosos registos de canções corais em que a sua voz sobressai em apontamentos ou intervenções solísticas, mas sobretudo as gravações que realizou como solista com acompanhamento ao piano, designadamente, as “Oito Canções das Barcas Novas” (Fiama Hasse Pais Brandão), alternando com outro membro do coro, Manuel Pico, e com Olga Prats ao piano, ou estas colectâneas de “Canções heróicas” e “Canções do 25 de Abril”, em que é acompanhada ao piano por Madalena Sá Pessoa. ( … )
Mas, dir-se-ia mesmo que, sem Celeste Amorim, sem as suas raras qualidades vocais e musicais e, o que não é menos importante, sem a camaradagem e o empenhamento político em que ambos – o compositor e a intérprete – se irmanavam, Lopes-Graça não teria escrito um tão abundante repertório de canções de intervenção para voz solista e piano. A Celeste Amorim era essa voz de eleição.”
O texto de Mário Vieira de Carvalho é o elogio que melhor serve o nosso propósito de reconhecimento dessa Mulher de Abril que deu corpo e, literalmente a voz, ao combate pela liberdade. Celeste Amorim foi alma e expressão cabal do heróico canto português, alimento de gerações de mulheres e homens antes e depois da Revolução. Mulher de sóbrio encanto, é uma cantora que merece ficar nos anais da história da luta das mulheres de Abril que afinal tirou das sombras um sem número daquelas que gritaram igualdade a quem ouvir as quis. Vítima de uma morte súbita e inesperada deixou profunda dor nos espaços que ocupava entre familiares e amigos.