Cesina Borges Adães Bermudes nasceu a 20 de Maio de 1908, em Lisboa. Faleceu a 9 de Dezembro de 2001.
Médica obstetra e investigadora.

”Toda a sua longa e extraordinária vida (de Cesina) foi dedicada a apagar o pesadelo do parto clássico, judaico-cristão, da mulher sofredora e passiva, considerando a preparação para o parto e o método uma vitória da mulher sobre si própria, sobre a tradição e sobre o seu meio, um êxito do conhecimento sobre a ignorância, da educação sobre o obscurantismo”

Cesina Borges Adães Bermudes nasceu a 20 de Maio de 1908, em Lisboa, na freguesia dos Anjos, tendo falecido a 9 de Dezembro de 2001, com 93 anos. Filha do escritor teatral e ensaísta Félix Bermudes, homem de grande prestígio e muito conhecido no seu tempo e de Cândida Bermudes, doméstica, mulher instruída e de grande cultura. Frequentou o Liceu Camões, sendo a única rapariga numa turma de quinze rapazes. Licenciou-se em Medicina em Lisboa, no ano de 1933. Fez o Internato Geral em 1933/34 e o Internato de Cirurgia em 1937/38.

Terá decidido ser médica aos onze anos quando um tio materno, Lacerda e Melo, lhe falou do que era ser médico de aldeia e fazer visitas a gente pobre e sem cobrar nada. A figura desse tio seria o João Semana imortalizado por Júlio Dinis, em As Pupilas do Senhor Reitor.

Cesina Bermudes, depois de ser assistente de Anatomia e Clínica Geral nos Hospitais Civis de Lisboa, praticou Obstetrícia na Maternidade Alfredo da Costa já no ano de 1933. Prestou provas de doutoramento na Faculdade de Medicina de Lisboa na especialização de Obstetrícia, em 1947, tendo obtido a nota de dezanove valores. Foi a primeira mulher a doutorar-se em Medicina.

O regime fascista não lhe permitiu fazer uma carreira de ensino em Medicina. Acabou por exercer o magistério na Escola Técnica de Enfermeiras tendo trabalhado como médica no Centro de Assistência à Maternidade e Infância, um inovador Centro de Saúde de Lisboa, que só funcionou de 1939 a 1949.

Em 1954, partiu para Paris para estudar o que de mais avançado havia em obstetrícia.

De volta ao País, depois de ter trabalhado com o Dr. Lamaze, seguidor do método psicoprofilático, criado nos anos 20 do séc. XX na URSS, Cesina Bermudes introduz em Portugal o método psicoprofilático em obstetrícia, inicialmente conhecido como parto sem dor. Graça Mexia, que com ela trabalhou mais de 30 anos, refere o seu grande contributo para desmistificar as dores do parto e reduzir a ansiedade e o medo que culturalmente o rodeavam, afirmando que ”Toda a sua longa e extraordinária vida (de Cesina) foi dedicada a apagar o pesadelo do parto clássico, judaico-cristão, da mulher sofredora e passiva, considerando a preparação para o parto e o método uma vitória da mulher sobre si própria, sobre a tradição e sobre o seu meio, um êxito do conhecimento sobre a ignorância, da educação sobre o obscurantismo”[1] .

A par da inegável afronta e discriminação que sofreu quando não a deixaram ensinar na Faculdade de Medicina, a sua corajosa atitude face à ditadura e as suas relações de convivência e amizade com vastos sectores democráticos, terão sido acalentadas pelo pai que ela venerou até ao fim da vida. Mas a sua determinação em estar presente mesmo quando era difícil, de se afirmar em terrenos muito vedados às mulheres, a sua coerência na assumpção de uma postura política mostram também a sua firmeza de carácter e sentido de justiça social que, anos antes, o tema da sua dissertação de doutoramento deixava já antever[2]. Começou a ter consciência política nos anos quarenta. Participou na campanha de apoio à candidatura à Presidência da República do General Norton de Matos. Dentro desse grande movimento de resistência nasceu um movimento cívico de mulheres democratas no qual Cesina Bermudes participou com Maria Lamas, Isabel Aboim Inglês, Maria Palmira Tito de Morais, entre outras. Com uma vida atribulada pelas suas ideias contra o regime fascista, foi presa pela PIDE, em Dezembro de 1949, tendo ficado três meses na prisão de Caxias, segundo dita a sua própria biografia prisional (Proc.19.4.48). No século XX em que viveu, atravessado por duas guerras mundiais e uma ditadura, Cesina Bermudes foi dirigente ou fez parte das muitas comissões femininas eleitorais ou nas comissões em defesa da paz.

Intervém como médica e cidadã com grande militância a favor da qualidade de vida das mulheres. Nas muitas batalhas políticas assumiu claramente essa especificidade. Sempre ligada à vida das mulheres, em particular da assistência às grávidas, Cesina Bermudes ficou conhecida pela sua generosidade e humanidade e a ela muitas mulheres devem o alívio da dor e do sofrimento no parto. Em tempos de vida clandestina, muitas mulheres comunistas a recordam como uma amiga sempre pronta a ajudar as que viviam na clandestinidade, apoiando-as na assistência à gravidez e fazendo-lhes os partos clandestinamente.

Cesina Bermudes distingue-se na sua juventude como patinadora, ciclista e ginasta numa época em que poucas mulheres acediam à prática desportiva. Incentivada pelo pai, entra com sua irmã na primeira Volta a Lisboa em bicicleta, no ano de 1923, organizada pelo jornal O Sport de Lisboa e Benfica que seu pai dirigia à época e, sai vencedora. A Drª Cesina Bermudes, assim lhe chamavam os amigos e conhecidos, manifestou sempre uma enorme admiração por seu pai que foi sempre para ela uma referência Dever-se-á também a ele, o pioneirismo e a sensibilidade desta mulher para a causa das mulheres, já que ela própria o apresenta como um lutador feminista que jamais pactuava com a invisibilidade ou discriminações das mulheres[3].

Nos momentos de conversas e lembranças com alguns dos seus amigos em anos mais recentes recordava os tempos da 2.ªGrande Guerra, da falta de géneros e das bichas que havia às portas das mercearias e de todos os sítios que vendiam géneros alimentícios. Recordava igualmente os tempos da ditadura e da falta de liberdade, mantendo sempre o seu humor e ternura.

O poder local democrático, o Portugal de Abril, reconheceu o seu mérito e a sua tenacidade em prol da liberdade e a favor dos humildes. O seu nome figura na toponímia de Lisboa, na freguesia de Carnide. Das mãos de Mário Soares recebeu a Medalha de Comendador da Ordem da Liberdade em 19 de Maio de 1989. Sabemos que recebeu com particular agrado a Distinção de Honra do MDM, em 26 de Outubro de 1996, no Auditório Municipal de Póvoa de Santo Adrião (Loures) bem como a homenagem da Câmara Municipal de Lisboa em 11 de Novembro de 1998, no Palácio da Mitra. Foram homenagens que valorizavam o seu percurso antifascista em prol da dignidade das mulheres e dos valores de Abril e, ao mesmo tempo, davam actualidade à sua luta por uma maternidade com direitos, uma luta que depois do 25 de Abril exigiu ainda a sua intervenção e a sua pronta solidariedade com as mulheres.

Em 1984, a aprovação na Assembleia da República desta bela conquista de Abril inaugurou a igualdade de direitos e o fim de discriminações com base no sexo ou opções ideológicas, reconhecendo finalmente a função social da maternidade e o direito das mulheres e homens terem condições para uma maternidade/paternidade saudável e feliz.

Muito respeitada no meio médico, Cesina Bermudes deixou vários textos espalhados por revistas médicas sobre a sua especialidade, de que se destacam Bases Científicas do Parto sem Dor (1955) e Notas Soltas sobre o Parto sem Dor (1957). Sobre esta mulher franzina, com o penteado de sempre, uma trança a emoldurar-lhe o rosto miúdo e o olhar vivíssimo, com uma história de vida precursora e rica, muito haveria para dizer. Sem dúvida, uma mulher de têmpera, que viveu e viverá em nós como um exemplo da luta emancipadora que dá corpo aos ideais de Abril.

 

Bibliografia consultada

MEXIA, Graça. 45 anos e 38 000 grávidas depois, Página a Página, Lisboa, 2009.

Ilda Soares de Abreu e Maria Teresa Santos, Entrevista realizada em 7 de Fevereiro de 2000, publicada na revista Faces de Eva N.º 5, 2001, pp. 191-194.

Dicionário de Mulheres Celebres de Américo Lopes de Oliveira, Lello & Irmão Editores, Porto, 1981.

Dicionário no Feminino (Séculos XIX –XX) de Zília Osório de Castro e João Esteves

GORJÃO, Vanda. Mulheres em tempos sombrios. Oposição feminina ao Estado Novo, ICS, Lisboa2002.

[1] Graça Mexia, 45 anos e 38 000 grávidas depois, Página a Página, Lisboa, 2009

[2] Veja-se o tema da sua Dissertação de Doutoramento em 1947: Os músculos radiais externos estudados nos Portugueses de Condição Humilde.

[3] Vidé carta assinada por Cesina Bermudes, espólio MDM.

wb_gestao2Cesina Bermudes